a Sobre o tempo que passa: Valha-nos Calvino que bem podia ser santo!

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

19.5.08

Valha-nos Calvino que bem podia ser santo!


Reparo como a pequena política se encarquilha no "fait divers", perdendo-se em muitas pequenas cascas de árvore que nos ocultam a floresta da grande política. Daí que todos comentem a cena de Sócrates e Pinho, apanhados com cigarrito, no voo que os levava em visita oficial à Venezuela, onde Chávez invocou a protecção da Virgem de Fátima. Coisa de somenos, porque tudo pode ter sido inteiramente lícito e petroliferamente correcto, com resmas e resmas de Razão de Estado, dado que o príncipe nem sequer precisou de usar o absolutista princípio do "princeps a legibus solutus".


Reparo na intervenção presidencial sobre a matéria, dizendo que, no tempo dele, nos aviões fretados para viagens do primeiro-ministro, ele nunca fumava, embora não pudesse saber o que se passava por trás das cortinas, quando ainda não havia a lei proibicionista que nem sequer o Presidente tem poderes para a mudar...


Emociona-me a resposta Sócrates, pedindo desculpa por desconhecer as normas que ele próprio propôs, mas prometendo que, a partir de agora, vai mesmo deixar de fumar. Infelizmente, quando quis defender-se, revelou um velho fantasma, ao denunciar como "calvinistas", os denunciantes da liberdade de fumaça. Podia ter usado outros nomes diabólicos, como os de "fascista", de "puritano", de "inquisitorial", ou de "fundamentalista". Mas preferiu confessar, à boa maneira socialista, que está contra a ética protestante, fundadora do capitalismo, deste ar que todos respiramos na globalização, cometendo um pequeno deslize anticonstitucional, quando ofendeu as concepções do mundo e da vida nascidas na pátria de Jean Jacques Rousseau.


Vale-nos que a ministra que nos trata da saúde já arranjou meios para nos operarem às cataratas, sem recurso a Cuba, apenas com a mobilização dos meios do sector público da saúde, depois de ter criticado um acordo da ADSE com um hospital privado. Por outras palavras, certos preconceitos de esquerda que marcam os nossos socialistas acabam por dizer que as coisas só são públicas se o patrão for o Estado, não reparando que o título pode não corresponder ao conteúdo.


Não há meio de perceberem que não é o hábito que faz o monge, tal como não é o órgão que gera a função, quando o que interessa é ter o órgão ao serviço da função. Logo, não devemos continuara a julgar que só é público o que mede verticalmente, de cima para baixo, conforme a tradição absolutista do centralismo e do concentracionarismo.


Porque, se viajarmos pelo fundamento da velha república romana, notaremos que o máximo da coisa pública estava na horizontalidade dos pactos, nomeadamente quanto à qualificação de uma lei, que só era verdadeiramente pública quando os magistrados a propunham num comício do povo. Com efeito, só é efectivamente público o que reside na horizontalidade dos consensos pactistas. Porque a comunidade é superior ao principado, dado que a república vale mais do que o aparelho de poder e a nação é superior ao Estado.

Por outras palavras, não devemos trazer para a praça pública aquilo que, para ser eficaz, não deve sair do espaço da intimidade familiar e, muito menos, passar para o largo do pelourinho. Como jurista que continuo a ser, embora dessa ciência não faça modo de vida, até diria que a melhor sociedade é aquela onde todas as regras são espontaneamente cumpridas, nomeadamente aquela onde as tais questões de consciência não precisam do "casse tête" da guarda, dos manuais e códigos de processo penal e das grades prisionais...


Os bons situacionistas encontram-se sempre no sindicato dos elogios mútuos. E a Razão de Estado sempre seguiu a máxima maquivélica, segundo a qual os fins superiores da governação permitem a literatura de justificação dos homens de sucesso.


Tudo depende dos exércitos disponíveis e do desespero dominante. Apenas acrescento que em encruzilhadas onde não se vê luz ao fundo do túnel, o populismo é directamente proporcional aos sucedâneos messiânicos, mesmo que usem vestidos fora de moda, mas com muitos lacinhos de tecnocracia...


Entretanto, alguns generais têm feito declarações muito críticas sobre o défice de democracia e liberdade no país. Parece que vão além da mera autodefesa corporativa, tendo algo de recado dos pais fundadores do regime face à presente decadência de um sistema que vai amarfanhando o regime. Mais grave parece ser a intenção governamental de lei da rolha, num processo de compressão da liberdade de expressão que também afecta certas secções universitárias, onde alguns conselhos directivos e certas inspecções parecem reduzir instituições marcadas pela honra e pela inteligência a dependerem dos discursos oficiosos da hierarquia verticalista de certo estilo "decretino" e quase hierocrático...