Desgraçado daquele cuja prédica é resplandecente de glória, ao passo que é imoral nos seus actos.
A democracia, para além dos democratas, precisa dos povos e que os povos só confiam em políticos. A Europa não pode nascer de cima para baixo, com émulos de Bonaparte, Metternich ou Bismarck. A Europa que temos, bem pelo contrário, foi criada pela multiplicidade unitária do dividir para unificar. Além disso, por melhores que sejam os euroburocratas e os europarlamentocratas, nenhum deles, por mais genial que seja, ou todos eles juntos, por muitos e bons que sejam, conseguem pôr os homens concretos e as realidades dos povos ao serviço daquilo que eles decretam como processo histórico.
Hoje, quem ganhou foi a Europa, que assim teve a oportunidade de perceber que o europês não serve, porque a Europa só pode realizar-se através dos homens comuns. Aliás, a democracia é precisamente a decisão dos povos, através da voz autêntica dos homens concretos que os integram, nos momentos excepcionais. Só nos intervalos é que os governantes e os representantes podem falar em nome deles, mas dentro do mandato global que lhes foi atribuído.
Como cidadão de uma polis que, por acaso é a mais permanecente de todas as unidades políticas da Europa a que chegámos, aceito participar nas oscilações da balança da Europa porque o modelo de organização política dos textos fundamentais da União Europeia me garante a conservação daquelas liberdades nacionais que nos deram direito a república através da concretização do reino, no século XII. A Europa em que eu acredito, a Europa que leio nas entrelinhas dos pais- fundadores, é uma Europa que foi feita contra os erros políticos que levaram ao permanente confronto de impérios europeus. Daqueles impérios europeus que sempre foram uma degenerescência das poleis, daqueles impérios que, com o absolutismo, em nome da soberania una, inalienável, imprescritível e indivisível e do leviatânico Estado Moderno expropriaram os tais reinos, os únicos legítimos herdeiros da civitas da República Romana e da polis ateniense.
A minha república, herdeira do regresso à política que ocorreu nos séculos XII e XIII, inspirada em Aristóteles e Cícero, se revoltou contra a dominância do Papado e do Imperium e proclamou que rex est Imperator in regno suo. O reino de São Tomás e do nosso Infante D. Pedro, o reino dos comuns, feito de um príncipe com toda a comunidade da sua terra. O tal reino que o mesmo Duque de Coimbra visionava indutivamente, como um concelho em ponto grande. Este reino tinha um Príncipe, tinha um poder supremo, uma vontade de independência. Mas o poder supremo era da mesma natureza dos poderes que lhe estavam abaixo, onde o vértice era apenas uma parte da pirâmide do poder da polis, uma parte que, sendo parcela do todo, era, não obstante, representante do próprio todo. Acontece que este reino foi, a partir do absolutismo teocrático, expropriado pelo renascimento do império, num processo que passou da república teocrática dos luteranos, calvinistas ou cromwellianos, os primeiros ensaios do terrorismo totalitário do estadualismo, ao L'État c'est moi dos despotismos esclarecidos, continuando a mesma natureza despótica, quando se substituiu o rei absoluto pelo povo absoluto, da Revolução francesa à Revolução soviética.
Os Estados a que chegámos na Europa das potências e dos Estados em movimento, ainda continuam inconscientemente feudalizados por projectos imperiais frustrados. Da Espanha de Carlos V, à França de Napoleão. Da Alemanha de Hitler à Inglaterra de outras procuras de Império no além mar. Da Rússia sonhando-se polícia da Europa a outros impérios espirituais ou económicos. Estes modelos talvez contrariem aquilo que a Europa do pós-guerra tentou ser. Essa outra coisa que ousou procurar a esquecida unidade da respublica christiana na diversidade dos reinos, dos povos e das nações. Essa tentativa de escrituração de um novo capítulo para além da dinâmica da vontade de poder dos Estados Directores em confronto, instrumentalizando uma multidão de Estados secundários. Esse sonho que tentou refazer os Estados à maneira do chamado regresso da política, do dividir para unificar. Promovendo uma descolonização interna da Europa, para reconstruir a casa comum, em torno do que era efectivamente comum.
Como português, fiel às Cortes de Coimbra de 1385, às promessas traídas das Cortes de Tomar e à solução de autodeterminação pela vontade nacional concretizada no dia 1 de Dezembro de 1640, acredito na Europa como a república universal a que temos direito. Acredito na Europa da respublica christiana - como o defendeu o humanismo cristão - acredito na Europa dos ius gentium - como o defenderam os estóicos e o humanismo laico dos projectistas da paz. Acredito na Europa que os democratas-cristãos, os sociais-democratas, os conservadores reformistas e os liberais éticos começaram a reconstruir face às últimas tragédias do Leviatã e do Behemot, como as conhecemos na Segunda Guerra Mundial. Não tenho, portanto, medo da Europa. Não tenho o receio atávico de certo conservadorismo britânico, com medo da Invencível Armada. Não tenho complexos do cordão sanitário luterano, como certos nórdicos da Europa enriquecida continuam a alimentar, para não falar nalguns descendentes dos huguenotes franceses que por aí circulam com outros nomes.
O reino e a república são deste mundo, onde o homem deve voltar a ser a medida de todas as coisas e onde nada do que é humano pode ser alheio ao político. O Império é que é do outro. É daquilo que só Deus tem. Por isso, importa proclamar que devemos expurgar do Estado a que chegámos tudo o que não é do homem, todas aquelas religiões seculares dos Impérios e Leviatãs que, em nome de essências e nominalismos, tanto desumanizam o Estado como ofendem o divino, quando transformam as ideologias em sucedâneos do transcendente. Temos de ter os pés assentes na terra e o coração no mais além. Não podemos ficar a meio caminho, servindo coisas etéreas que são o produto dos nossos fantasmas. Assim foram os impérios que ofenderam aquele verdadeiro Império que só Deus tem. Assim continuam a ser certas concepções de Estado moderno, filhas do despotismo esclarecido e das teocráticas razões de Estado.
Pretendo apenas sublinhar que andam para aí, muitas concepções de uma certa Europa desumana que, em nome de um sacro-império tecnoburocrático, muito iluminista e desejoso de despotismo, pretende continuar na senda dos senhores da guerra, a destruir as repúblicas, as civitates e os reinos, imitando as formas do Estado moderno primitivo. Contra essa degenerescência estatolátrica, mesmo que revestida com as peles do cordeiro federativo, têm que estar contra os autênticos europeístas. Mas não confundamos a nuvem com Juno, não caiamos no engodo do Leviatã; não balbuciemos, sob o nome de nacionalismo, as teses dos irmãos inimigos imperialistas, desses que pretendem restaurar sistemas Metternich, embrulhando o cacete do czar entre o pietismo de falsas Santas Alianças e de falsas teologias de mercado.
Quem me dera poder vir a dizer ser a vez uma República Portuguesa, num qualquer dos anos que me restam. Tem de ser uma vez a vez de um das nações-Estados mais permanecentes da Europa. Quando tivermos a liberdade de poder por dizer sim à autêntica liberdade europeia, mesmo dizendo não a anteprojectos de gabinetes eurocráticos. Quando deixarmos de nos sentir uma periferia a caminho da integração e voltarmos a assumir-nos como o próprio centro, tão europeus como qualquer outra parte da Europa. Quem me dera poder dizer ser a vez duma Europa mais livre que, abandonando a tentação dos Estados Directores, proclame que a unidade não exclui a diversidade e, muito menos, o orgulho das seculares franquias nacionais.
Uma nova espécie de organização política de um grande espaço inter-estadual e inter-nacional. Uma realidade nova capaz de quebrar as estafadas classificações das federações e das confederações, ultrapassando o ius intercivitates procedente do modelo da Paz de Vestefália, esse cuius regio eius religio destruidor da unidade da respublica christiana, e do regime da hierarquia das potências consagrado na Conferência de Viena.
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