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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

16.7.08

Quando se inventou o príncipe para que deixasse de haver um dono, para que deixasse de haver confusão entre propriedade e poder...


Ontem, o grande notário da geofinança do regime, o senhor governador com nome de imperador romano, veio confirmar que a crise que ainda não é crise por uma questão de semântica, mas que, segundo as suas canónicas palavras, pode vir a ser a maior desde a Segunda Guerra Mundial, porque já chegou e veio para agravar-se e para que os trabalhadores e classe média a paguem com impostos e inflação. O senhor Primeiro-Ministro preferiu ir comemorar o primeiro aniversário de Costa em Lisboa, onde, em jantarada à União Nacional, mas já sem zona ribeirinha, se comemorou o fim de metade dos calotes da autarquia capitaleira, assim transformando uma obrigação na rara heroicidade dos tempos que correm, a que corresponde ao antiquado lema do paga o que deves, para o senhor Estado deixar de ser um Estado Ladrão, apesar de os impostos já terem o nível lendário do Robin dos Bosques.

Entretanto, o Presidente Cavaco, especialista em remédios para a conjuntura económica e certificado pai deste modelo bancoburocrático e rotativista, continua a gerir o silêncio, tal como a sua discípula Manela. Apenas falou António Borges que foi melhor no improviso comentarista que no papel escrito. Por outras palavras, chegámos à tal hora da verdade, obviamente sem demissões. E o culpado de todos os males da conjuntura é o bastonário Marinho Pinto, em risco de ostracismo, cujas palavras foram superiormente qualificadas pelo conselho superior magistral como coisas "sem dignidade institucional", apesar de provirem do representante de uma instituição não sindical e de terem a dignidade de quem quer viver como pensa, mesmo que alguns pensem que pensa mal. Espera-se que o Primeiro Ministro não participe no jantar comemorativo do primeiro aniversário da tomada de posse do bastonário que assim se arrisca a ser um dos principais candidatos à presidência da república.

Já Mário Crespo entrevistou Manuel Alegre que, além da bela revista que lançou, onde anda o dedo da barbearia de Luís Novaes Tito, tratou de nos recordar a figura do Infante Dom Pedro, duque de Coimbra, o das Sete Partidas, morto em Alfarrobeira. Porque então se deu a vitória da facção dos Braganças e o estilo de governança de D. Afonso V que, segundo Rui de Pina era muito pródigo especialmente nas coisas da Coroa do reino, de que sem grandes merecimentos nem muita necessidade, mas só por manhas e praticas que com ele os grandesusavam, a desguarneceu e minguou.

Primeiro, numerosas doações; não exercício da correição e do direito de entrada; abusos, corrupção, clientelismo, desleixo na administração da justiça; banalização da dignidade de vassalos de el-rei que deixaram de ter número certo. Aliás, surgem novos títulos nobiliárquicos. Se os condes vinham da primeira dinastia e os duques de D. João I, eis que aparecem os marqueses em 1451 , os barões, em 1475, e os viscondes em 1476, com os duques e marqueses a suplantarem os velhos condes. Também, com D. Afonso V, entre os vassalos de el Rei com direito a moradia, surge uma nova hierarquia que, por ordem decrescente, incluía os cavaleiros do Conselho de El-Rei, os cavaleiros-fidalgos, os escudeirosa-fidalgos e os moços-fidalgos

Com efeito, D. Afonso V, na fase posterior a Alfarrobeira, quando se alia ao partido aristocrático, ao novo grupo que se forma aliás, a partir de membros da família real com a dinastia de Avis que tem nos Braganças, também descendentes de D. João I, o respectivo líder, não quer voltar à feudalidade, quer construir o centro, eliminando uma das resistências principais ao processo.

Para tanto, cria uma nova grande nobreza. Aliás, os números não o desmentem: se com D. Duarte, existia apenas 2 duques e 6 condes, eis que em 1481, data da morte de D. Afonso V, nos surgem 4 duques, 3 marqueses, 25 condes, 1 visconde e um barão (foi o legista João Fernandes da Silveira que em 1475 foi feito barão de Alvito). São cerca de quinhentos grandes concentrados em quatro ou cinco famílias, com destaque para os Braganças que detêm 2 ducados, 3 marquesados e 7 condados.

Outro dos grandes é o irmão mais novo do rei, o Infante D. Fernando, que recebe grande parte da herança do Infante D. Henrique, reunindo 2 ducados e o mestrado de duas ordens religioso-militares. Ai dos derrotados que, como Infante D. Pedro dizia na Virtuosa Benfeitoria, quiseram promover o bem comum, dado que por esto lhe outorgou deos o regimento, e os homees conssentiron que sobrelles fossem senhores.

O Estado tem de voltar a ser um instituição, que, segundo as palavras de Georges Burdeau, é uma empresa ao serviço de uma ideia, organizada de tal modo que, achando-se a ideia incorporada na empresa, esta dispõe de uma duração e de um poder superiores aos dos indivíduos por intermédio dos quais actua, permitindo ao grupo que continue, segundo uma técnica mais aperfeiçoada, a procura do bem comum; assegura uma coesaão mais estreita entre a actividade dos governantes e o esforço pedido aos governados; torna mais flexível a influência da ideia de direito sobre os comportamentos sociais e, com isso, constitui

Logo, há uma clara distinção entre a respublica ou comunidade e o principado ou governança da comunidade, como lhe chamava o Infante D. Pedro. Onde o Estado aparece como a ligação entre o príncipe e toda a comunidade da sua terra, entre o rei e o povo comum (Infante D. Pedro), onde a governança da comunidade tanto tem um imperium ou senhorio, como magistratus com regimentos. Quando se dá a separação entre o doméstico e o político. Quando se inventou o príncipe para que deixasse de haver um dono, para que deixasse de haver confusão entre propriedade e poder, para que os homens deixassem de ser coisas. Agradeço a Manuel Alegre esta recordação patriótica. A poesia é o melhor remédio para a crise política, onde os tecnocratas e os politiqueiros chamam adivinhação à política, a tal arte que sempre misturou o lume da razão com o lume da profecia, coisas sem as quais não existiria Portugal, nem Banco de Portugal.