a Sobre o tempo que passa: Um protesto liberal contra a sociedade de casino

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

15.12.08

Um protesto liberal contra a sociedade de casino


Leio:  Alguns dos maiores bancos do Mundo somam perdas potenciais na ordem de milhares de milhões de euros resultantes do alegado esquema de fraude montado pelo corretor norte-americano Bernard Madoff. O sistema piramidal de fundos de risco implementado pelo antigo presidente do Nasdaq terá criado um buraco de 50 mil milhões de dólares.

Continuo liberal, porque, como liberal, em 2002, publiquei um manual sobre a matéria onde podia ler-se: 

Passámos assim a viver nas teias de uma sociedade de casino, nessa nova religião dos mercados que tem como principais activistas os descendentes dos yuppies, que vão agitando uma massa informe de devotos de um pretenso capitalismo popular, marcado pela velha lógica do enrichissez vous.

A figura dos corretores aventureiros quase ameaça substituir a dos garimpeiros e dos achadores de volfrâmio, e a realidade quase se transforma numa ficção folhetinesca de telenovela, aproximando-se de muitos dos meandros do romance de Dona Branca. Aliás, podem reunir-se, sob os holofotes televisivos, os líderes das superpotências ou do G8, bem como as cimeiras da NATO, da UE ou da OSCE, mas não se conhece o rosto dos mestres do mercado, desses novos predadores para quem os valores da justiça e da honra parecem não contar.

A este respeito, importa sublinhar que revolução dos mercados, expressa pela livre circulação dos capitais, foi precedida pelo processo da desregulação e das privatizações. Assim, o poder económico desmaterializou-se, deixando de ter como base preponderante os chamado factores de produção da teoria marxista, como eram a terra, os recursos naturais e as máquinas, e passou a assentar em factores imateriais, como o conhecimento científico, a alta tecnologia, a informação, a comunicação e as finanças.

Com efeito, deu-se uma espécie de desmaterialização de certos mercados, onde não faltam as próprias mercadorias imateriais, como os chamados futuros puramente financeiros. O impacto da desmaterialização é, aliás, particularmente patente nas chamadas indústrias culturais, dos livros, da música, das artes plásticas, do cinema e até dos próprios títulos escolares, dado que hoje podem negociar-se mestrados e doutoramentos, quase virtualmente (Capella, 1997, p. 246).

O poder, incluindo o poder económico, transformou-se numa rede de poderes. Deixou de ser uma coisa, um patrimonium, um ter, e volveu-se em relação, numa rede de muitos micropoderes, em que os novos mestres predadores e conquistadores já não são apenas os detentores do capital nem os organizadores da era dos managers, mas antes os efectivos manipuladores dos tentáculos dessa rede, principalmente os que conseguem, por todos os meios, a necessária inside information. Surgiram, deste modo, novos grupos que, escapando às anteriores formas de representação e de legitimação política e social, logo manifestaram desprezo pelo bem mais precioso de qualquer democracia: aquela informação que permite a consolidação de uma opinião crítica.

Continuando a seguir o inventário do professor de economia de Lovaina, Ricardo Petrella, num artigo célebre Les Nouveaux Maîtres du Monde, publicado em Le Monde Diplomatique, de Novembro de 1995, esses novos poderes têm, com eles, legiões de aliados e colaboracionistas, desde os quadros da tecnociência aos criadores de símbolos, onde também é marcante o conúbio entre os universitários e os opinion makers, aliás paralelo à própria entrada dos grandes media no sistema dominante.

Aliás, estes novos elementos até diferem qualitativamente dos anteriores managers ou organizadores, denunciados em 1940 por James Burnham (1905-1987), do mesmo modo se distanciando dos chamados tecnocratas dos anos sessenta. Até vieram dar uma nova dimensão à chamada investigação científica, tornando caducas as velhas estruturas universitárias, quando algumas destas ficaram dependentes das empresas e das fundações transnacionais e se libertaram dos subsídios públicos, directamente recebidos das agências estaduais ou das organizações inter-estaduais. O grupo, cada vez mais cosmopolita, até ganha algumas características de casta apátrida, encontrando-se nas mesmas escolas de formação permanente e actualizando o velho receio da sinarquia, conforme as profecias de Saint-Yves d'Alveydre (1842-1900), para quem o mundo poderia ser conquistado por um sociedade secreta que integraria uma elite de técnicos e de representantes dos banqueiros.

Já não temos as sete irmãs das multinacionais petrolíferas, das grandes famílias que dominavam o tempo de mera troca de mercadorias que marcou o auge da revolução industrial. Passámos para a sociedade da informação, onde o novo bezerro de ouro é um produto que não se consome, como acontecia com o petróleo ou a alimentação, dado que se cria pelo uso e até pode reproduzir-se pelo abuso.

Como assinala Robert B. Reich, na sua obra The Work of Nations, de 1991, as actuais empresas multinacionais já não cabem no universo concentracionário dos modelos burocráticos e centralizados, tendo constituído uma vasta rede de entidades descentralizadas, de tal maneira ramificadas pelo mundo que até já não podem receber um bilhete de identidade nacional. As empresas em causa deixaram, definitivamente, de ter pátria, até pelas participações cruzadas que se foram estabelecendo entre as que representavam as principais marcas do mercado.

O cientista e filósofo húngaro Karl Polanyi (1886-1964) em The Great Transformation, de 1944, já referia a dinâmica interna da produção em massa de mercadorias, porque voltada sobre si mesma, levou a um crescimento ilimitado das trocas e a uma autonomização incontrolada do mercado.

O chamado fim do comunismo não foi, afinal, o fim da história, dado que a vitória dos modelos ocidentais significou a consagração de um estilo de organização marcado por factores totalmente diversos daqueles que poderiam ser captados por Karl Marx ou Lenine. Em primeiro lugar, surgiu a resposta teórica keynesiana, geradora daquilo que uns qualificam como consenso social-democrata e outros, como mero socialismo de direita. Seguiu-se o exemplo do New Deal de Franklin Delano Roosevelt, assente na aliança entre o capital e o trabalho. Avançou-se, depois, no compromisso fordista. E, na Europa Ocidental, social-democratas e democratas-cristãos promoveram a instauração de um Welfare State que acabou por ser eficaz, tanto para a superação do Warfare State, como para a competição com os modelos do socialismo real, de marca sovietista.

Acontece que, com o fim do mundo bipolar, mais do que a emergência de uma só superpotência, começou a desenhar-se um nebuloso império dos grandes países ricos, fundador do Grupo dos Sete, império esse que assenta em três moedas sólidas (dollar, deutsche Mark e yen), tem, como guardas avançadas, duas ou três praças financeiras fortes, núcleo duro que, pelos recursos, pelo poder de mando e pela atracção mimética, foi controlando quase todas as principais elites dos chamados países periféricos, e navegando num mar informativo manejado por agências como a Reuters ou a Dow Jones.

Com a chegada do euro, apenas nos apetece recordar que também o dinheiro não tem pátria. Aliás, o americano dollar tem origens etimológicas no alemão thaler, começando até por ser a designação dada pelos ingleses ao peso espanhol que circulava nas possessões sul-americanas, antes de se transformar na unidade monetária norte-americana desde 2 de Abril de 1792. E foi em nome da americanização que se instituíram o deutsche Mark, gerado pela ocupação americana, e o próprio Yen japonês. As três pessoas da tríade, estão, por dentro, unidas por uma neutra perspectiva circulatória…

A humanidade, depois de 1989 e do dobrar do milénio, também não chegou ao fim da história, porque logo se sucedeu uma espécie de balkamondialisation, com o regresso das nações e até das etnias, não se confirmando a previsão de um Kenichi Ohmae, o mr. Strategy, que proclamava o fim do Estado-Nação e a chegada de uma redentora entidade maior, a que chamava Estados-Região, porque, face à emergência de um capitalismo supra-territorial, os Estados apenas exerceriam funções transitórias no âmbito da organização e da regulação económicas.

Com efeito, o ritmo da política internacional que nos passou a marcar, depois da Guerra Fria, acabou por aproximar-se de modelos típicos dos anos vinte do século passado, dado que inúmeras Nações sem Estado voltaram a emergir. Os nacionalismos, muito particularmente os etnonacionalismos, eram, afinal, brasas por extinguir, que logo se avivaram com os novos ventos da história, quando estes sopraram as cinzas dos superpowers que os proibiam. O explodir do espaço controlado pelo imperial-comunismo soviético; os problemas que o Império Britânico deixou por resolver no Médio Oriente e no subcontinente indiano; a questão do renascimento árabe; ou as guerras civis africanas, afinal, não são causas, são sintomas. Por muito novas que fossem as maravilhas do século XX, nenhuma das forças instaladas no comando do universo foi capaz de construir um desses homens novos que as mesmas, repetindo o Iluminismo gnóstico, prometiam edificar sobre a pretensa tabula rasa do homem de sempre.

A globalização económica, onde a geo-finança passou a comandar a geo-economia, ao mesmo tempo que se desenvolveram instituições globais de vigilância como o G7/G8, o Fundo Monetário Internacional, o Banco Mundial e a Organização Mundial do Comércio, vai levar a que se assista à eliminação do modelo de Welfare State e à crise das ideologias que o geraram, da democracia-cristã à social-democracia.

O dinheiro transformou-se no mais mobilizador dos valores universais do nosso tempo e, com ele, veio uma difusa forma de corrupção, onde se compram e vendem factores de poder, pelo simples uso da inside information. Porque a sociedade contemporânea, marcada pela difusão da informação, ao criar uma hiper-informação, teve que passar a assentar em redes de circulação, logo, quanto mais a informação de difunde, mais a rede se valoriza.

O poder deixou, assim, de ser uma pirâmide e transformou-se num labirinto, onde, ao mesmo tempo que os actores da decisão se multiplicam, se torna brutalmente desigual o acesso ao que é relevante, dado que raros sabem qual o local onde as fundamentais decisões são realmente tomadas.