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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

10.12.08

Há quem não goste de ser tratado como gado corrupto, como mais um escravo que se pode adquirir no mercado da concorrência desleal


Não é Tereza Batista, mas José Sócrates que se diz cansado de guerra com os professores, utilizando uma metáfora pouco propícia à missão docente, enquanto o episódio da gazeta dos deputados, que apanhou em cheio o PSD, demonstra como a sala da Câmara dos Pares é menos propícia ao controlo electrónico do que o hemiciclo do Solar dos Barrigas. Não tardará que depois de casa roubada, apareçam ainda mais clamores sobre o controleirismo dos senhores representantes da nação, numa espiral que, como a evasão fiscal, levará a ainda mais gazetas, porque o problema não está em substituir os presidentes dos grupos parlamentares por policiais sargentos de milícias, mas de darmos uma função nobre ao parlamento.

Aliás, quando, em mero registo de "lapsus calami", um jovem secretário de estadão deste governo lusitano  proclamou que quem não estivesse com as magníficas reformas socráticas seria trucidado, ele apenas cometeu um erro de pôr mais um texto fora do contexto, sem trazer a coisa nomeada ao próprio nome. Aliás, nem sequer atingiu o nível de uma piada como aquela em que, outrora, Jorge Coelho tentou mobilizar o partido clamando em comicieirês que "quem se mete com o PS leva". Qualquer um desses lapsos, não me leva a elogiar Maria de Lurdes, mas apenas me faz admirar antigos colaboradores do velho diário anarco-sindicalista, como a genialidade do escritor Ferreira de Catsro, a autenticidade memorialista de um Alexandre Vieira ou os rasgos de paciente patriotismo do historiador Mário Domingues, santomense e tudo.

Apenas registo mais este rol de decadentismos, sem dizer teias da conspiração e estupidez vingativa da persiganga, agremiando generais solitários com alferes auxiliares, sargentos verbeteiros e uns donzéis ambiciosos e carreiristas. Já disse tudo e quero regressar assim com a razão posta em discurso. Basta notar como uma simples faúlha incendiou a muita palha do parceiro grego. Basta ter ouvido os avisos que ontem lançaram Daniel Bessa e João Salgueiro que, para leigo, disseram que não podemos continuar a viver acima daquilo que produzimos, porque o gnosticismo da integração europeia e da globalização, nestes domínios, é coisa que já era e nunca, na verdade, foi.

Porque há altos serventuários do estadão que se assumem como de primeira, especialmente quando pensam que as outras gentes do Puto são todas de segunda, esquecendo que há quem não goste de ser tratado como gado corrupto, como mais um escravo que se pode adquirir no mercado da concorrência desleal, só porque estamos sujeitos a claustrofobia. Mesmo quando me dizem que o mosquito do dengue ataca apenas a horas de meio dia, temo confundi-lo com as melgas que gostam do crepúsculo.

Por mim,  não tenho aquela potência absoluta que permita manejar a classificação do bem e do mal, onde tanto há bestas que passam a bestiais, como bestiais que passam a bestas, conforme os caprichos e a birras do déspota mimado. Eu sei que a noite desceu sobre a cidade, mas vivo, ainda assim na outra metade do mundo. E não posso esquecer, não sei esquecer. Porque algumas vezes me viajei assim por dentro, vibrando sobre as pequenas colinas que vislumbrei, além dos farrapos que me encobriam o dia. E já nem sei se o que aconteceu foi em verdade ou foi em sonho, quando olhei de mim, longe de mim, outros sinais.

E sinto. Sem  pensamento. Sinto o sabor de outros sentires que só uma vez se sentem porque foram a primeira vez, a única vez. Como as feridas que abri nos frutos da terra, as sinfonias de um estampido diante do mar, nesses sinais que foram e me deram eternidade. Porque, na memória, eles são recordações de felicidade.