a Sobre o tempo que passa: Mais uma peça que não se inclui na campanha branca que visa a cavaquização do PS

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

4.3.09

Mais uma peça que não se inclui na campanha branca que visa a cavaquização do PS




Para os devidos efeitos, ao ver uma pequena parangona da minha autoria no "Meia Hora", junto a entrevista dada, em discurso oral directo, a Ana Clara e ontem divulgada. Também em tom de registo, acrescento a minha intervenção, sexta-feira, na SIC, que o meu filho Francisco me mandou de Delaware. Estou a preparar-me para uma conferência sobre a corrupção que, amanhã, quinta-feira, pelas 19 horas, proferirei no ISCTE.

O DIABO — Qual é a radiografia que traça actualmente do País?

ADELINO MALTEZ — Acredito que o Mundo está melhor e, por isso, acredito que Portugal também melhorou. Só que uma coisa são as altas expectativas que nos deram e, outra, é o falhanço dessas expectativas. E, nesse aspecto, o Governo de Sócrates, que era de facto uma novidade — já que tínhamos experimentado a maioria absoluta de Cavaco mas ainda não tínhamos tido uma maioria absoluta do PS — acabou por falhar redondamente a sua própria boa intenção.

Qual era a boa intenção e onde é que o Governo falhou?

A boa intenção era o Fórum «Novas Fronteiras», com a ideia de que o PS representava o Bloco Central sem necessidade de coligação. E até era um Bloco Central alargado porque tinha como ministro dos Negócios Estrangeiros o fundador do CDS (Freitas do Amaral). Lembro-me do primeiro elogio de do Prof. Freitas do Amaral, enquanto ministro, dizendo que este era o Governo que tinha mais catedráticos na História de Portugal… Só que esta intenção que Sócrates tentou concretizar — e depois da eleição de Cavaco Silva para Belém o estado de graça até parecia reforçar-se com uma cooperação institucional de grande qualidade — acabou por passar, tal como passou o tempo das vacas gordas e entramos, agora, no realismo das vacas magras. Ainda por cima com uma crise internacional deste gabarito.

Mas antes da crise havia o discurso do ímpeto reformista do Governo.

Mas isso foi o discurso de justificação de poder.

Mas todos esses anúncios não passaram de intenções cosméticas ou, de facto, houve reformas de fundo?

Havia ali boas intenções de que o Inferno e a política estão cheios. E podemos ir a casos concretos.

 

«Reforma do Estado foi um falhanço»

 

Tais como?

 

Podemos ir à bandeira da reforma do Estado, que foi um falhanço completo porque era uma espécie de fotocópia abstracta que servia para tudo. A única reforma que começou por resultar foi, de certo modo, o controle do défice mas, com a crise, ficou uma espécie de amargo de cinto apertado. Porque a crise, além de ser uma crise global, foi um revelador da crise interna, que andava escondida pelo discurso demagógico e pela engenharia dos subsídios europeus. Aí está o exemplo de uma reforma completamente falhada — o caso do PRACE — e de uma reforma que começou a resultar mas que se perdeu porque «tudo o vento da crise global levou». E voltamos aquilo que sempre fomos, de uma fragilidade estrutural enorme.

E que está à vista.

Sim, a crise foi, sobretudo, no nosso caso, — até porque não tínhamos lixo tóxico nem tínhamos crise de «subprime» — um revelador ou sismógrafo que registou aquilo  que já cá estava dentro e ela ainda não foi torneada pelo voluntarismo das boas intenções de Sócrates. Dou outro exemplo. O Tratado de Lisboa.

 

O Tratado de Lisboa, com esta crise, está desactualizado?

 

Não, o europeísmo do Primeiro-Ministro é que está com falta de crença porque, para tão altos desígnios da sua política internacional, ele preferiu ir fazer um discurso de palanque para o Congresso do PS e não ir à Cimeira Europeia do passado fim-de-semana. Tirando a ironia, o que está em cima da mesa de gravíssimo, no plano da política europeia, é que houve previamente uma pré-Cimeira ou uma falsa Cimeira, a dos membros da União Europeia em que participam no chamados G20.

 

Falsa porquê?

 

Porque a formal e institucional Cimeira esteve totalmente condicionada pela meia dúzia de membros da UE que fazem parte do grupo dos mais ricos do mundo, os que têm mais de 90% do produto planetário (França, Alemanha, Reino Unido, Itália, Holanda e Espanha). Regressaram claramente à Europa do Congresso de Viena de 1815. E dividiram os membros da UE nas grandes potências do dinheiro, as que são os membros do G20, e os Estados secundários, os que vão a reboque das grandes potências. Ou seja, voltámos claramente à hierarquia das potências,  sem qualquer espécie de vergonha. Isto é a negação total do sonho do projecto europeu e da lei constitucional mínima da fundação da Europa que está a ser rasgada pelas grandes. Isto é dramático e Sócrates não tem culpa disso.

 

 

Que consequências resultarão daí?

Esta reunião que Ângela Merkel convocou, condicionou totalmente a Cimeira Europeia em que os outros foram lá para se submeterem aos ditames dos grandes da Europa: dos Berlusconis’s, dos Sarkozy’s e dos Gordon Brown’s...onde outro é o “porreiro, pá!”

 

 

A resposta internacional para esta crise acaba por cair em saco roto?

 

Não digo que caia em saco roto porque o saco dos G20 não anda roto, anda sempre a roubar. Cai é na impotência de países com a nossa dimensão que, neste momento, fazem o discurso mais mentiroso da política — que é o que faz o Eng.º José Sócrates e grande parte da Oposição.

 

E que discurso é esse?

É dizer que o Estado é necessário. Mas eu pergunto: qual Estado? O Estado do Marquês de Pombal? O do Fontes Pereira de Melo? O do Salazar? Nenhum deles já existe.

 

E que Estado existe então em Portugal?

É o Estado da Quimonda. Qual é o Estado que diz que tem milhões para dar à Quimonda mas depois vem o discurso da culpa ser dos alemães, que não deram nada e estragaram tudo. O que precisamos, neste sistema de relações económicas e financeiras globais, é de um Estado. Não o velho Estado nacional mas um reforço das regras globais e das regras da União Europeia. Neste momento o que nos faz falta é um Estado europeu, não copiando o velho modelo dos Estados nacionais, mas com uma intervenção de regras para pôr na ordem este capitalismo internacional desregrado que nos destruiu. Precisávamos de uma Organização Mundial do Comércio, como precisávamos de formas de controlo do comércio justo a nível mundial e europeu. Neste momento a principal razão da crise que vivemos não é José Sócrates é, sobretudo, o vazio da Europa, o que é contrário aos princípios fundamentais que deram origem a este belo esforço com a UE. Nesse aspecto continuo perfeitamente europeísta e adepto daquilo que é a necessidade de regrar este sistema internacional. O capitalismo liberal é o único, até agora, que cumpriu regras e tem condições para ultrapassar a crise, não é o regresso aos proteccionismos e mercantilismos estadualistas que agravarão o problema. O problema é global e só poder ter uma resposta de instauração de um político global e europeu, de um Estado-anti-estado que assuma formas de república universal ou de um Estado de Direito universal, de uma instância a que os médios e pequenos Estados possam recorrer contra os abusos das grandes potências. O que nos falta é a existência de uma certa supraestadualidade quer europeia, quer global.

 

Que consequências é que esta injecção de capital dos Estados nos mercados financeiros vai provocar no futuro?

 

Os velhos Estados nacionais são pequenos demais para este grande problema da crise. Nem os EUA, de forma isolacionista, têm suficiente força, porque só uma federação global de boas vontades a nível de um político mundial é que é capaz de enfrentar os grandes problemas do nosso tempo. Porque até os grandes Estados são pequenos demais perante esta crise. Como dizia Daniel Bell. O problema é que os velhos Estados mantêm o reflexo condicionado para serem grandes demais para os problemas pequenos do quotidiano. É o que está a acontecer com José Sócrates.

 

«A força banco-burocrática»

 

Em que aspecto?

 

Se Sócrates não tem força para resolver a Quimonda, eis que, curiosamente, quando o Estado demonstra a sua impotência para a crise global logo começa a ser grande demais para os pequenos problemas do quotidiano não libertando a sociedade civil. Crescem os sinais de exibição de autoritarismo do aparelho de poder e não há um esforço de melhor Estado e mais sociedade, mantendo-se a asfixia da autonomia da sociedade civil. Veja-se como, neste século XXI, ainda continua verdadeira a precaução que Antero de Quental tinha contra a força banco-burocrática — é isto que manda em Portugal. Veja-se como ainda mantemos um centralismo capitaleirista, como ainda se mantém algum imobilismo das forças da inércia do “estado a que chegámos”. Sócrates é o principal conservador do que está. Apesar de ser socialista e dizer que defende o progresso ele é conservador do estado a que chegámos.

 

E em ano de eleições, Sócrates está refém deste estado de coisas e da crise?

 

Acho que ele próprio, ao não alterar estas regras da inércia que nos costumam imobilizar, percebeu que nós vivemos numa crise moral porque a única moral que impera é, como alguém dizia, a moral do «sapateiro de Braga», a do “ou há moralidade, ou comem todos”. Vivemos naquilo a que se chamava na I República a ditadura da incompetência. Isto é, perdemos o impulso daquilo que foi uma jovem democracia que nos fez regenerar e a criatividade do que chamávamos o Estado de Direito democrático. No fundo,  a chamada racionalidade normativa da política. Estamos a assistir a uma espécie de suspensão da política e a um regresso a formas de legitimidade pré-políticas, como são as legitimidades do patrimonialismo neofeudal. Isto é, acaba-se a política — que é a praça pública, com regras — e voltamos à «casa». E a casa — «domus» em romano — tinha um chefe, o “dominus”, de onde veio o nosso “dono”. E o que está a acontecer é uma espécie de regresso dos velhos donos do poder que se adaptaram às manhas de 30 anos de democracia e estão a tentar usurpar a democracia voltando a mostrar o poder nu e cru das forças vivas. Neste momento são eles que dominam, por exemplo, esta subsidiocracia desta engenharia dos subsídios, eles próprios até já têm os seres que costumam aparecer em épocas de decadência que são aquilo que Gilberto Freire chamava os intelectuários — uma síntese de intelectuais com serventuários e que montaram uma rede neofeudal que quase destrói a política. Veja-se o que está a ser revelado por estas crises de três bancos que mostraram a face oculta dos efectivos atentados à legitimidade racional normativa do Estado de Direito.

 

Vivemos numa espécie de centralismo democrático?

 

Não, não vivemos em centralismo democrático. Nós estamos neste momento a denunciar esta situação. E a liberdade de expressão, se não for condicionada por processos disciplinares e directivas do senhor director ou do senhor presidente, está em dialéctica. Isto é uma democracia que tem que ouvir as verdades.

 

Mas às vezes não gosta de as ouvir.

 

Mas tem de as ouvir. Há um momento da História de Portugal muito parecido com este que foi o «fontismo». Não eram auto-estradas mas eram caminhos-de-ferro. E o «fontismo», perdido o impulso regenerador inicial, acabou por nos conduzir à bancarrota.

 

Corremos o risco de caminhar para a bancarrota?

Corremos.

 

Mesmo na União Europeia.

 

Claro. Basta ver as análises de João Salgueiro ou de Medina Carreira, cada um no seu estilo, que êm feito as contas e têm demonstrado o que é este endividamento externo. E quanto mais endividados estamos, mais novos-ricos aparecem. E estes são os chamados devoristas. E o povo às vezes gosta dos devoristas.

 

Há forças sociais capazes de travar esta tendência que vivemos?

 

A Pátria vai resistir. As nossas decadências costumam ser longas. Mas o País acaba sempre por se regenerar, de deitar fora o que está podre e de voltar a ter a seiva da árvore da Pátria. Mas para isso é preciso trabalhar. E o grande problema, muitas vezes da política, é que nós vamos para a solução mais fácil, que é o imediatismo. Não gostamos do que temos e votamos no mal menor.

O que está em causa é que entre o que está e as alternativas que nos oferecem há muita semelhança. Sócrates, por exemplo, é da mesma cepa que Santana e Portas.

 

E é da mesma cepa que Manuela Ferreira Leite?

 

Não. Quando ela falar podemos fazer mais comparações mas o silêncio dela custa a quebrar. Temos aqui um problema de regeneração global não é apenas tirar este e pôr aquele.

 

E esse problema de regeneração ainda não será resolvido nestas legislativas?

 

Não acredito porque com o crescendo da corrupção, pelo menos, da percepção da corrupção, com o aumento do indiferentismo e com a crise internacional da geo-finança, continuo a não entender porque é que as instituições políticas portuguesas, sobretudo, o Parlamento, o Governo e os tribunais não batem à porta do Palácio de Belém e não fazem uma espécie de novo Pacto Social contra a corrupção e o indiferentismo.

 

Uma espécie de União Nacional.

 

Não. Pergunto se os partidos não têm o bom senso de pedir ao Presidente da República para que todos se libertem dos seus principais inimigos.

 

Que são?

 

O principal inimigo dos actuais partidos é a corrupção. Porque a maior parte dos dirigentes partidários portugueses são pessoas que são capazes de dizer o mesmo que eu e vivem arredados numa imagem terrível. Vamos supor que Sócrates não tem nada a ver com estas trapalhadas que insinuam que ele faz parte (caso Freeport). Aconteceu-lhe a ele o que pode acontecer a todos os líderes partidários se não perceberem os movimentos profundos desta opinião pública e não recuperarem o povo para a democracia. De outra maneira criamos uma democracia eventualmente sem povo. As eleições, neste ambiente, poderão conduzir a uma maioria relativa, provavelmente do PS, ou do PSD, se Manuela Ferreira Leite, depois deste caminho pela verdade e pela província, recuperar a imagem. Mas qualquer um deles é demasiado fraco para resolver os grandes problemas que temos neste momento. Acho que esta crise aponta para um governo de emergência nacional com um prazo curtíssimo para criarmos o tal Pacto Social. E não excluo neste Governo, para não reeditarmos o bloco central, o CDS e o PCP.

 

«A crise exige uma atitude de coragem»

 

Mas isso será difícil de acontecer?

 

Dificílimo mas a crise exige uma atitude de coragem, com os partidos e o PR, em conjunto.

 

Voltando a Manuela Ferreira Leite. Como acha que os portugueses olham para ela?

 

Não sei. Vamos a ver o que vai dar o investimento que ela está a fazer num conjunto de perspectivas contrárias às medidas que o Governo tomou e, aí, ela tem sido de alguma coerência. Num ano tão quente como este, não a vejo a atingir a maioria absoluta. Coloco a hipótese de maioria relativa tanto para o PS como para o PSD. E logicamente com Manuela Ferreira Leite. Não está excluído esse cenário. A líder do PSD não é uma amadora destas coisas. Mas acho que há aí muita propaganda que a quer matar antes de ela ir a terreno. Se o Primeiro-Ministro aceitasse um debate na televisão, corajoso, com a líder da Oposição, como ela propôs, acho que seria interessante.

 

E o que vai na cabeça do Presidente?

 

O grande livro do Presidente é um livro de planeamentismo  sobre política orçamental. Ele explanou todo o seu pensamento e é muito coerente consigo mesmo. Mas o programa que ele apresentou para Belém foi ultrapassado também pelas circunstâncias.

 

O que seria bom para o País depois destes três actos eleitorais que estão à porta?

 

Já disse que seria bom uma coligação pós-eleitoral ou alargada e mobilizadora da opinião pública. Qualquer vitória absoluta de um partido conduz a uma espiral de decadência sem estado de graça minimamente viável. É isso que algumas democracias, mais fortes e mais ricas que a nossa, fizeram. Portugal não está para Berlusconis’s. Qualquer solução à «Berlusconi», em Portugal, seria uma solução desastrosa.