O processo de desinstitucionalização em curso
Comentar quatro anos da primeira maioria absoluta do PS, entre o primitivo “estado de graça”e a actual crispação da pré-campanha eleitoral, em plena crise global, implica notar que quase todos chamaram esperança à mera punição das trapalhadas dos anteriores governos do PSD/CDS, quando “animal feroz” se fingia o “action man” de um falso reformismo que o parecia confirmar como o líder de uma pretensa ala direita do PS, ocupando a falta de norte do vizinho do Bloco Central.
Quando, a partir do Mindelo, o plebiscitado secretário-geral do PS, utiliza uma visita de Estado para “malhar” na oposição, está tudo dito quanto à confusão entre o público e o doméstico, entre o chicote do turbulento, à Santos Silva ou à José Lelo, e a cenoura com que pretende captar os disidentes, de Edmundo Pedro a Manuel Alegre. Porque, os fabricantes de “agenda setting” o aconselharam a reduzir o PSD de Manuela Ferreira Leite ao nível do “bota-abaixismo” e da “maledicência”, bem como as manifestações de rua a simples emanações das tradicionais “correias de transmissão” dos comunistas que “comem criancinhas ao pequeno almoço”.
Com efeito, até a eleição presidencial de Cavaco Silva reforçou a imagem da “boa moeda” que expulsara Santana Lopes e Paulo Portas, especialmente quando se atingiu quase o ritmo celestial da assinatura do Tratado do Mar da Palha. Só que, se o poder corrompe e enlouquece, o poder absoluto, ou à solta, pode corromper absolutamente e enlouquecer absolutamente, especialmente quando se ilude com o palanque da propaganda. Especialmente num país que já não sabe sorrir, perdido numa federação de endogamias e de pequenos quintais autárquicos, onde a “personalização do poder” dos micro-autoritarismos sub-estatais decreta quem pode ser o dissidente ou o opositor, criando mecanismos regulamentares que lhe comprimem a cidadania ou o sujeitam à processualização típica da velha persiganga.
Foi pena que a quantidade de energia que se gastou nestas falsas mudanças tivesse ficado para sempre naquela zona do desperdício da entropia a que os analistas de sistemas chamam lixo. Porque as proclamadas boas intenções do reformismo não passaram do inferno de um verniz que encobriu uma efectiva “governança sem governo” e uma espécie de pilotagem automática de uma nau do Estado, sem flexível leme nem enraizada âncora.
E muitos só compreenderam que navegámos à bolina quando as primeiras brisas da crise global nos atiraram para os baixios do “pantanal”, sem “tabu”. Afinal, a proclamada mudança apenas serviu os conservadores do que está e não do que deve-se, isto é, apenas foi mais uma peça de uma engrenagem da desinstitucionalização, onde o fervilhar das “forças vivas” da casta bancoburocrática e capitaleira tentou ocupar o vazio moral da luta contra as autonomias societárias. Por exemplo, uma directora-regional de educação, verticalmente dependente, foi preferível aos professores; a mania da imagem da rede tecnológica amarfanhou os magistrados; e os burocratas, dependentes do ministerialismo, desertificaram a deontologia de médicos, militares e polícias. O resultado foi a preferência de 20% dos portugueses pelo Bloco de Esquerda e pelo PCP, bem como as mais participadas manifestações de rua de protesto contra o poder.
Ao mesmo tempo, regressavam os tradicionais compadres e comadres do país dependente da “mesa do orçamento”, com muitos anjos, antes da queda, procurando “tacho” entre os capatazes e os donos do poder. Não foi estranho que, a muitos, voltasse a apetecer o regresso ao regime das velhas medidas de segurança daquele Estado de Legalidade do bate primeiro, protesta depois. Dessa máquina trituradora de opositores, adversários e dissidentes, em nome dos superiores interesses da pretensa Razão de Estado, pouco preocupada com a mercearia dos direitos, liberdades e garantias, dado que parecem mais importantes os negócios com autocratas compradores dos “Magalhães” e os programas do número único e do “chip” dos automóveis.
Deste modo, voltaram a crepitar as brasas daquela ditadura da incompetência, que se encoltava oculta pela fina película das cinzas de uma hipócrita racionalidade normativa. Por outras palavras, a competência voltou a ser inferior ao patrimonialismo da compra do poder e da lealdade neofeudal, marcada pela música celestial das inaugurações e pelo ritmo da parecerística, do "outsourcing" e da subsidiocracia. A desintitucionalização em curso, em nome de doutrinarismos e abstracções, apenas permitiu que a mão longa do ministerialismo de Estado ocupasse a República, facilitando a colonização de potências desse regime de ninguém, com serviçais de vontades estranhas à nossa autonomia nacional. Se não regenerarmos a coisa pública, não tardará que as disputas entre o PS, o PSD e o CDS nos “madailizem” a todos, reduzindo-nos aos confrontos retóricos do facciosismo da futebolítica, entre águias, leões e dragões, doirados apitos e eternos julgamentos que nos levam às cabazadas dos confrontos externos, com as bandeiras de Scolari a amarelecerem nas janelas e varandas dos “egrégios avós” a pagarem remédios a prestações...
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