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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

13.4.09

O gavião voltou à Ribeira do Tejo, num tempo em que já não damos grandes passeios ao domingo


O gavião voltou à Ribeira do Tejo. Há meses que não visitava meu Vale de Lobos e as  arcas dos papéis passados. Já ontem, pela noitinha, voltei a dar longos passeios pelas ruas desta minha aldeia adoptiva. O céu continuava cheio de letras, mas a casa não tinha telhas destapadas pela tempestade. Ainda espreitei, nas televisões, horas e horas sobre a crise dos leões e das águias, mas foi-me dado concluir que o sportinguista Jorge Sampaio prefere sair do onusiano programa da aliança de civilizações e vir apoiar a coligação de esquerda em Lisboa, temendo que Santana vença Costa, enquanto o benfiquista Manuel Alegre deve estar em véspera de anunciar a negociada coligação com Sócrates, onde um dos deputados da respectiva quota dever ser Fernanda Câncio. 

Entretanto, faço contas à vida, dado que os meus patrões, o Conselho de Reitores, e os Conselhos Gerais que eles compactaram e que os vão reeleger, porque amor com amor se paga, anunciam que a parte da mesa do orçamento de que eles são gestores não tem massa para o pagamento dos vencimentos. O senhor ministro, que contratou com eles a auto-regulação da fórmula de financiamento, vai naturalmente continuar a reconhecer que as excepções confirmam a regra, mesmo que lhe apetecesse usar a faca para redistribuir o queijo de outra forma. Julgo que, se houvesse um debate público sobre a matéria, ficaríamos tão esclarecidos quanto as iluminações que recebemos do frente a frente entre Dias da Cunha e Soares Franco, ou o que não houve entre Luís Filipe Vieira e Pinto da Costa, mesmo com dez programas semanais de comentadores televisivos, especialistas na matéria, em horas e horas de hiperinformação.

Com tanta discussão sobre a casca das árvores, não reparamos na floresta. Quem paga as universidades públicas e subsidia a futebolítica é o zé contribuinte que preencheu a sua ficha de IRS por estes dias. Logo, quanto mais árvores exóticas o sistema plantar, mais impossível se torna ver um boi diante dos palácios e das cortes que todos vão semeando. 

O maquiavelismo, além de uma péssima moral, é também uma péssima política (Wilhelm Ropke). Parecendo vencer no curto-prazo, acaba por também ser uma péssima política, porque perde a aparente razão logo que desaparece a breve interrupção do vazio de política, quando os povos, aparentemente anestesiados, recobram a normalidade e descobrem todos meandros das pressões ocultas dos vários neocorporativismos que estão a transformar a democracia numa democratura, para utilizar-se uma expressão consagrada por Guy Mermet em Démocrature. Comment les Médias Transforment la Démocratie, 1987, quando refere a emergência de um novo sistema social onde os media exercem sobre os actores da vida social e sobre o público uma espécie de ditadura doce, marcada pelos funcionários do pronto a pensar que fornecem aos ouvintes e aos telespectadores verdades pré-digeridas e directamente assimiláveis.

Porque este sistema central de valores gira em torno de um centro ainda mais fundamental: o do Portugal dos Pequeninos com a mania das grandezas. Manteve-se assim um novo modelo de corte, expressão derivada do latim cohors, cohordis, aquela parte da casa romana que estava ao lado e complementava o hortus, o jardim. Um nome que tanto deu a côrte dos reis, com um circunflexo no o, donde veio o cortês, a cortesia e o cortesão, como também se manteve numa designação de parte da casa rural portuguesa, a córte dos animais (com acento agudo no ó), enquanto na língua inglesa deu court, com o significado de tribunal.  

Já Norbert Elias, na sua frustrada tese de doutoramento dos anos trinta considerava a corte real, nomeadamente a francesa, gerou um modelo de controlo da sociedade pelo centro político, ao contrário do regime aristocrático britânico, que tornou as elites locais independentes do centro, e do estilo das universidades alemãs, que foram impermeáveis ao iluminismo. É daqui que deriva aquele tipo de pessoal político que circula junto do centro do poder, não dando conselho ao príncipe, mas levando-lhe notícias, através da intriga de salão. E em Portugal, o crime da decadência continua a compensar...