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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

5.5.09

A democracia do regime é bem maior do que as curvas e contracurvas do sistema partidocrático que vai gangrenando a república

Os sinais de esperança de hoje são melhores do que ontem, tal como os desta semana superam os da anterior. E quando um choque existencial nos obriga a repensar a hierarquia dos desafios, nem por isso desistimos da banalidade quotidiana, desta espuma do tempo que passa, destas muitas notas de rodapé da futura história, onde os principais actores ainda não compreenderam que podem ser vencidos, mesmo se vencerem. E agradeço aos amigos que, nestes dias, me deram ânimo. Obrigado!

Ontem mesmo, recebi mais uma papeleta sobre a qual ainda não posso falar, so bre a qual até tenho vergonha institucional de falar, mais uma notinha pé-de-página que constitui um belo revelador do ódio. Apenas anoto para memória futura. E nada digo. Quem cala não consente, "nihil dixit", como me ensinou o querido Sebastião do direito romano, quando aprendi a ser jurista, mas cuja qualidade não invoco apesar de dezenas anos de docente da área. Prefiro falar com a Joana mal ela acorda lá no hospital e respirar o ar puro da Primavera que regressa.

Mas não desisti de pensar e dar o meu testemunho cívico. Os que me apanharam ontem nas redes hertziana, da TSF ao RCP, repararam que os meus pontos de vista são claro, sobre esta questão dos discuros de Sampaio e Manuela Ferreira Leite sobre o dito bloco central, coisa que aconteceu há mais de um quarto de século e que explodiu em Dona Branca, antes de chegar a época do primeiro Cavaco e de Delors. Por mim, apenas recordo que foi sob tal Bloco que partidariamente militei, na evidente oposição, como seria natural, para continuar em oposição depois de ele ter sido escavacado. Aliás, entre no fim da militância partidária logo após a queda do Muro e da chegada do novo partido-sistema, o cavaquismo laranja, a mãe efectiva do actual cavaquismo socrático.

Apenas recordo que, mesmo na história política portuguesa, há mais coligações governamentais pós-eleitorais do que coligações pré-eleitorais, como foi a AD. O primeiro Bloco Central não foi o de Mário Soares (PS) com Mota Pinto, Rui Machete e João Salgueiro (PSD). O primeiro foi o do governo FMI de Soares com Freitas do Amaral, o chamado governo PS/CDS, com Constâncio a ministro das finanças. Logo, o povo é quem mais ordena e os resultados eleitorais que tivermos é que vão determinar que tipo de bloco surgirá. Pode ser um novo Bloco Central como o foi o do primeiro governo de Sócrates, onde Freitas voltou a ministro. Pode ser o Bloco Central actual entre o PS e as forças vivas que gostam da nacionalização dos prejuízos e da privatização dos lucros, a que o BE e o PCP costumam dar o nome de governo de direita e de cedência aos neoliberais.

Como pode ser uma coligação com o PSD, o CDS ou o PCP/BE. Pode ser tudo, depende da balança das opções do eleitorado. Se houver uma maioria absolutíssima do PS com o PCP, uma nova liderança do PS está condenada à união de esquerda. Se o PSD e o CDS tivessem uma improvável aritmética de domínio, mesmo que o PS fosse o primeiro, para outro lado deveria o Presidente da República inclinar-se. O resto são golpes de propaganda eleitoral. Convém até não esquecer que, neste ciclo, o primeiro político no activo a falar em Bloco central foi Paulo Pedroso quando regressou, isto é, veio da ala esquerda do PS o regresso do fantasma, que é tão antigo quanto o governo de união sagrada da Primeira República ou os esforços de concentração partidária do crepúsculo da monarquia liberal.

Aliás, no dia em que Manuel Dias Loureiro vai voltar a ser parlamentarmente inquirido, nunca nos esqueçamos que ele serviu de acólito ao lançamento das novas entrevistas de António Ferro a novo S que nos manda, agora pela pena de Eduarda Maio. E que outro acólito era aquele advogado a que Francisco Sá Carneiro deu o cognome de ministro da propaganda dos governos presidenciais do eanismo.

Porque, aritmética por aritmética, não foi a renovada maioria absoluta que impediu o tabu de Cavaco. Ou a falta de um queijo limiano que obrigou Guterres a abandonar, reconhecendo a situação pantanosa. E a maioria absoluta do actual presidente será sempre maior do que as maiorias que resultarem das próximas eleições paralamentares. Política e confiança pública são bem mais do que medições quantitativas e os actuais partidos, como instituições, são maiores do que as lideranças transitórias que agora os personalizam. Basta recordar que Manuela Ferreira Leite entrou no PSD uma década depois da respectiva fundação e que Sócrates até começou pela JSD.

Por outras palavras, os actuais têm mais energias do que as jogadas eleitoralistas do respectivo comando de campanha e a democracia do regime é bem maior do que as curvas e contracurvas do sistema partidocrático que vai gangrenando a república.