a Sobre o tempo que passa: O eu e as próprias circunstâncias, ou de como podemos recolher eternidade

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

30.4.09

O eu e as próprias circunstâncias, ou de como podemos recolher eternidade


Hoje, já há alguns sinais que me permitem voltar à "polis".  Não para falar da revolta de Manuel Alegre contra alguns inspectores ditos educativos, ou para entender como o "Magalhães" e os pais das crianças que os receberam confirmam a doença do partido que se confunde com o Estado, com toda a naturalidade, mesmo com desculpas do primeiro-ministro, depois de mais uma peça de antologia de Santos Silva. Quando Alegre souber mais actuações do género e todos conhecermos muitas outras gravações de tempos de antena, ficaremos a saber o que o sindicato dos magistrados do Ministério Público foi contar ao Presidente da República.

Só não compreendo o porquê da indignação de certos PSs e PSDs sobre o Manuela Ferreira Leite disse quanto à hipótese de acordos interpartidários de incidência governativa entre o PSD, o CDS e o PS. Julgo que ela apenas seguiu o conselho de Cavaco dado a todos os partidos parlamentares e que deveria também incluir partidos mais à esquerda, tendo nomeadamente em vista o PCP. Porque quem vai determinar o tipo de coligações pós-eleitorais de um futuro governo não vai ser a classe política, mas o próprio eleitorado, cujas indicações tanto poderão ir de uma coligação de esquerda a uma coligação do centro ou da direita. É a diferença que vai de uma maioria absoluta somando PSD e CDS, a uma maioria absoluta somando PS e PCP. E nisto tanto Manuela Ferreira Leite como José Sócrates não dependem dos respectivos militantes e, muito menos, das respectivas intenções. Dependem do povo e dos superiores interesses do país que não são captáveis até por comentadores, como eu próprio. Logo, apenas concluo que sem humildade de respeito pela vontade geral não pode haver democracia.

Apesar de receber estes sinais agressivos do ambiente, prefiro notar como, durante estes dias de dor e esperança, confirmei como a rede familiar e das amizades é bem superior a uma "polis" que vive fechada dentro de si mesma, em claustrofobia endogâmica, no poder pelo poder. Eu, por exemplo, sem deixar de peregrinar, nos intervalos hospitalares, pelo beneditino das minhas investigações profissionais, concluí como cada um de nós é especialmente conformado pelos livros de ideias que foram publicados no ano em que nasceu. Eu, por exemplo, tenho como livros de cabeceira, um "Homem Revoltado" de Camus, ou um "Sistema Totalitário" de Hannah Arendt, assumindo-me como avô de mim próprio. Por mim, confirmo como as ideias a que mais recorro, as que fazem do tempo, o meu tempo, têm uma longa duração tal que as colocam no extremo inicial da minha própria existência.

Assim, vivi metafísica, afagando os sinais de eternidade que me chegaram e me lançaram no próprio movimento de uma corrente de concepções do mundo e da vida, onde, prendendo-me a estas profundidades, perdi a voz própria e passei a falar através de tais causas. As que me fazem comungar em crenças, princípios e valores. Porque assim nos libertamos do narcisismo de quem, por vezes, tem a ilusão de poder atingir a originalidade. Sermos servidores de uma crença é podermos receber alento de um transcendente situado que nos pode levar a assumir a plenitude existencial e a consequente metafísica do tempo que passa.

Logo, sempre reconheço que é possível diluir-nos em todos os outros. Que cada um pode ser mais do que um qualquer solitário eu. Porque ninguém sabe o mistério das folhas por escrever que, apesar de  estarem presas ao caderno das próprias circunstâncias, são apenas espaços a preencher pelo imprevisível e pela mudança. Mesmo sabendo de onde viemos e no que acreditamos, não sabemos para onde vamos. Embora possamos reconhecer qual o nosso dever-ser-que-é, resta-nos apenas o mero reconhecimento da nossa imperfeição. Sobretudo se notarmos como temos o pior dos défice que é o de não sabermos amar o mais próximo e todos os próximos, quando não nos damos em comunhão a essa raiz do próprio mais além, cujo fundamento é o que melhor, do mundo, podemos recolher.