a Sobre o tempo que passa: Um pouco de Montesquieu, se faz favor...

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

16.6.09

Um pouco de Montesquieu, se faz favor...


Com mais umas longas horas de Constâncio contra os deputados-inquiridores, a que, pacientemente, assisti em directo, foi-me dado reparar que pode haver e há deputados de qualidade, bem como um governador do banco central que não pertence à esquadria dos unidimensionalizados, confirmando que tudo aconteceu porque o mesmo governador e a respectiva equipa se revelaram ingénuos face a um perfil errado que traçaram sobre um antigo director da supervisão do mesmo banco central, por acaso, antigo secretário de Estado financeiro do primeiro-ministro que é actualmente presidente da república. Julgo que esta confissão de Constâncio, reiterada e sincera, poderá ser repetida por Cavaco e também confesso que, para mim, Constâncio e Cavaco estão acima de qualquer suspeita como homens públicos, dos tais que colocam o valor do bem comum, isto é, a síntese de ordem e de justiça, como diria São Tomás de Aquino, no vértice dos respectivos princípios e crenças. Reparei também como tudo poderia ter sido superável se funcionasse, de forma flexível, um telefone directo entre este governador do Banco de Portugal e idêntico aparelho receptor de informação do anterior Procurador-Geral da República.


Porque nenhum deles deve ser ingénuo quanto à possibilidade do temor reverencial ou do respeitinho perante alguém que vestiu certos hábitos de monge, mas que por mais farpelas que usem, não se fazem por isso mesmo, monges. Oliveira e Costa e a dúzia de colaboradores do BPN, referida por Vítor Constâncio, até podem ter sofrido daquela habitual doença do poder referida pelo francês Montesquieu, o pai da democracia norte-americana quando quis imitar a revolução inglesa: qualquer pessoa virtuosa, quando conquista o poder, tende a abusar do poder que tem e única forma conhecida pela história de o controlar, está na fixação dos limites do contrapoder, pelo que, para cada acelerador, se deve estabelecer um travão, para cada faculdade de estatuir, deve existir outra faculdade de vetar. A qualidade da democracia mede-se, menos pelo saber quem manda, e mais pelo estabelecimento de um adequado sistema de controlo do poder daqueles que mandam.


Ontem não foi Constâncio que ganhou ou perdeu. Do mesmo modo, também não foram os deputados inquiridores que atingiram o exacto inverso do perder ou do ganhar. Perdemos todos, porque todos estamos a pagar, quer os prejuízos, quer, sobretudo, a confiança pública nas instituições dos políticos profissionais, dos banqueiros e dos magistrados, dado que, a certa altura, colocamos ao mesmo nível um polícia e um ladrão, porque julgamos que basta um golpe de retórica para atravessarmos a fronteira da salvação. E os auditores e telespectadores, transformados em massa, perante tais malabarismos, podem entrar em desespero e optar pela clássica rebelião das mesmas massas. E ela já pode medir-se pelo nível da abstenção face ao sufrágio universal e até pela quantidade dos votos brancos e nulos. Isto é, quem não continuar ingénuo, já pode medir a evidência: passámos do indiferentismo ao azedume e há que ser cirúrgico e evitar a explosão.


Ainda ontem, conversando com o meu filho, recentemente regressado de um ano lectivo numa universidade norte-americana, dentro de um programa de intercâmbio com uma universidade pública portuguesa, confirmei meia dúzia de verdades comparativas entre a principal potência do mundo e este quintal à beira-mar plantado, feito reino cadaveroso.


Lá, uma das coisas menores da política e da cidadania são as eleições, porque os eleitos permanecem em contacto directo com os respectivos eleitores e respondem aos "inputs" destes, livres da disciplina partidária e, principalmente, livres da disciplina que lhes é imposta pelos directórios partidários. Lá, há comparativismo de medidas, entres os diversos membros da federação, e não comparações entre os pequeninos que somos e os grandes que nunca seremos, fazendo caricaturas e gerando megalomanias. Lá, é de pequenino que se torce o pepino, desde os bancos das universidades, onde os estudante que efectivamente pagam, escolhem responsavelmente os respectivos currículos e estão sujeitos à efectiva expulsão da universidade, ao fim de três condenações, coisa que entrou na rotina, desde a simples bebedeira ao mero acto de copianço, plágio ou outra desonestidade académica. Porque há liberdade, responsabilidade e, acima de tudo, regras que se cumprem porque são comunitariamente assumidas. Cá, há Bolonha que, em nome do carreirismo da empregomania, logo aumentou as especializações em pormenores de engenharia curricular, impedindo a livre escolha...


Lá, não são os constitucionalistas e os legisladores da fotocópia das abstracções que fazem as regras, porque elas vêm da experimentação, da natureza das coisas e da vontade de gradualismo perfeccionista. Lá, todos são educados para a república pelo civismo e todos sabem distinguir perfeitamente o programa de um republicano ou de um democrata. Aqui, entre um PS, um PSD ou um CDS, venha o diabo e escolha, com tanta água benta de politicamente correcto, pelo que se cai sempre no irrealismo dos fantasmas de direita e dos complexos de esquerda, para que tudo continue como dantes com o quartel general na palha de Abrantes e na tal moral populista do sapateiro de Braga onde não há moralidade nem comem todos. O nosso problema não é político, continua a ser moral e cultural. Contâncio e Cavaco não são causas, são sintomas. E Sócrates e Manuela, as suas vítimas. Porque quem continua a pagar é o Zé. O tal que pensa que o Estado é deles e não nosso.