Pedindo ajuda a Platão, apenas posso concluir que vivemos num sistema de ausência de leis, embora ainda não tenhamos chegado ao governo da violência e da coerção. Porque nos esquecemos que todos os regimes correspondem a um certo tipo de homem. Porque todas eles ocorrem dentro de cada um de nós, a partir da tensão entre a parte da alma que é dotada de razão e a outra a parte animal e selvagem. Porque existe em cada um de nós uma espécie de desejos terrível, selvagem e sem leis, mesmo nos poucos de entre nós que parecem comedidos.
A solução está em fazermos coincidir cada regime com o tipo de homem, porque o homem tirânico é feito à semelhança da polis tirânica, o democrático, da democracia e os restantes, do mesmo modo. Só pode, portanto, avaliar-se um regime como se avalia um homem, isto é, em pensamento. E só deve avaliá-los quem, em pensamento, for capaz de penetrar no carácter de um homem e ver claro nele.
Porque há três espécies de homens, o filósofo, o ambicioso, o interesseiro, movidos, respectivamente, pelo saber, pelo prazer das honrarias e pelo lucro. E dessa fricção é que surgiria a dinâmica dos regimes. Aliás, mais do que a crítica à democracia, o que Platão faz é uma crítica à classe política que a dominava, marcada pelo facciosismo. Uma classe política onde primava a ignorância e a incompetência e que vivia da adulação das massas.
Porque os cavalos e burros andam pelas ruas, acostumados a uma liberdade completa e altiva, embatendo sempre contra quem vier em sentido contrário, a menos que saiam do caminho.
O perigo deste modelo está na circunstância de, na democracia, nascer a tirania. Porque é do cúmulo da liberdade que surge a mais completa e mais selvagem das escravaturas. Porque o excesso costuma ser correspondido por uma mudança radical, no sentido oposto, quer nas estações, quer nas plantas, quer nos corpos, e não menos nas cidades.
Assim, na degenerescência democrática, cada um deixa de cumprir a sua função: louvam e honram em particular e em público os governantes que parecem governados, e os governados que parecem governantes.
Do mesmo modo, surge o professor que teme os discípulos e o velho que quer parecer novo: o professor teme e lisonjeia os discípulos, e estes têm os mestres em pouca conta; outro tanto se passa com os preceptores. No conjunto, os jovens imitam os mais velhos, e competem com eles em palavras e em acções; ao passo que os anciãos condescendem com os novos, enchem-se de vivacidade e espírito, a imitar os jovens, a fim de não parecerem aborrecidos e autoritários.
O antídoto proposto por Platão é o esforço filosófico, estético e poético. E lá temos o aristocrata a antepor-se à ignorância e à incompetência dos políticos. Para evitar o aparecimento do protector que se transforma em tirano. Para evitar que o povo, ao tentar escapar ao fumo da escravatura de homens livres, não caia no fogo do domínio dos escravos, da escravatura de escravos, que é a tirania.
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