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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

2.7.09

O estado da nação: entre o professor que teme os discípulos e o velho que quer parecer novo


Quando uma instituição como o Benfica se deixa enredar em sucessivas manobras de profissionais da litigância em cautelares providências e os donos do poder chamam garotos aos que exercem os respectivos direitos, apenas confirmamos como a decadência do modelo das golpadas partidocráticos se tornou paradigma. O que ocorria nos partidos em crise propagou-se agora para todas as instituições da velha sociedade civil que o estadão tornou satélites, enquanto ex-ministros e ex-conselheiros de Estado se tornam arguidos, com termos de identidade e residência, mas com a plenitude dos sinais distintivos das velhas leis sumptuárias a confirmarem a respectiva mudança de estatuto social.

Logo, não foi por acaso que ontem teve direito de antena o ministro pinho do espírito santo, a quem os assessores sugeriram que fizesse aquela cena de levar papéis sublinhados a amarelo que ele rasgou em directo para insultar a líder do principal partido da oposição e cumprir a directiva partidária de todos malharem nela, numa frente de combate da velha técnica da campanha negra, onde serviu de ponta de lança o próprio porta-voz oficial do partido que, para nossa vergonha, ainda permanece no cargo de secretário de estado da justiça da república dos portugueses. Apenas sorrio quando ainda há pouco via Sócrates esbracejar no Congresso do PS contra as manobras pouco claras que o queriam enredar no caso "Freeport" e agora vejo o PS inteiro a surgir como "malhador" de uma ex-ministra das finanças por causa da opção de um qualquer negócio de Estado. Corremos o risco de um quqluer candidato a primeiro-ministro faça o discurso de Luís Filipe Vieira contra a garotada, ou de um qualquer reitor ou presidente do conselho geral de uma universidade clamando contra os opositores, os dissidentes ou os tipos com mau feitio que lhe disserem "não".

Pedindo ajuda a Platão, apenas posso concluir que vivemos num sistema de ausência de leis, embora ainda não tenhamos chegado ao governo da violência e da coerção. Porque nos esquecemos que todos os regimes correspondem a um certo tipo de homem. Porque todas eles ocorrem dentro de cada um de nós, a partir da tensão entre a parte da alma que é dotada de razão e a outra a parte animal e selvagem. Porque existe em cada um de nós uma espécie de desejos terrível, selvagem e sem leis, mesmo nos poucos de entre nós que parecem comedidos.

A solução está em fazermos coincidir cada regime com o tipo de homem, porque o homem tirânico é feito à semelhança da polis tirânica, o democrático, da democracia e os restantes, do mesmo modo. Só pode, portanto, avaliar-se um regime como se avalia um homem, isto é, em pensamento. E só deve avaliá-los quem, em pensamento, for capaz de penetrar no carácter de um homem e ver claro nele.

Porque há três espécies de homens, o filósofo, o ambicioso, o interesseiro, movidos, respectivamente, pelo saber, pelo prazer das honrarias e pelo lucro. E dessa fricção é que surgiria a dinâmica dos regimes. Aliás, mais do que a crítica à democracia, o que Platão faz é uma crítica à classe política que a dominava, marcada pelo facciosismo. Uma classe política onde primava a ignorância e a incompetência e que vivia da adulação das massas.

Porque os cavalos e burros andam pelas ruas, acostumados a uma liberdade completa e altiva, embatendo sempre contra quem vier em sentido contrário, a menos que saiam do caminho.

O perigo deste modelo está na circunstância de, na democracia, nascer a tirania. Porque é do cúmulo da liberdade que surge a mais completa e mais selvagem das escravaturas. Porque o excesso costuma ser correspondido por uma mudança radical, no sentido oposto, quer nas estações, quer nas plantas, quer nos corpos, e não menos nas cidades.

Assim, na degenerescência democrática, cada um deixa de cumprir a sua função: louvam e honram em particular e em público os governantes que parecem governados, e os governados que parecem governantes.

Do mesmo modo, surge o professor que teme os discípulos e o velho que quer parecer novo: o professor teme e lisonjeia os discípulos, e estes têm os mestres em pouca conta; outro tanto se passa com os preceptores. No conjunto, os jovens imitam os mais velhos, e competem com eles em palavras e em acções; ao passo que os anciãos condescendem com os novos, enchem-se de vivacidade e espírito, a imitar os jovens, a fim de não parecerem aborrecidos e autoritários.

O antídoto proposto por Platão é o esforço filosófico, estético e poético. E lá temos o aristocrata a antepor-se à ignorância e à incompetência dos políticos. Para evitar o aparecimento do protector que se transforma em tirano. Para evitar que o povo, ao tentar escapar ao fumo da escravatura de homens livres, não caia no fogo do domínio dos escravos, da escravatura de escravos, que é a tirania.