Abril: sim e seu principio. De Teresa Vieira
Tinham passado já 6 meses depois do 25 de Abril. Muitos andavam com uma espécie de beleza de colo. Parecia que qualquer outra realidade tinha perdido prioridade em ser falada, e agora o que seria preciso, o que era mesmo fundamental, era defender o não empobrecimento da libertação.
E muitas realidades faziam parte de uma espécie de nutrição dos dias. Recordo que o Francisco que fazia parte do nosso grupo, aqui e além, meio a brincar, meio a sério, nos chamava a atenção para as mulheres grávidas que já expunham o quanto o desejo nestas andanças, também implica um apelo ao nascimento de novas gerações.
Eu sentia que a mobilização estava no ar, mas num clima ainda pouco de vindima em seu tempo exacto.
Muitos já ultrapassavam o «ter mais» numa arma perigosa de intoxicar atmosferas sociais e espirituais, havendo grupos que a nível nacional, reivindicavam como seu, um “ produto” que anteriormente entendiam não dever ser pertença de ninguém.
Coisas destes tempos. Havia de facto muita energia centralizada e havia também núcleos que não eram mais do que aquilo que a esperança deles fazia: e eram afinal estes últimos, aqueles para quem o espaço deles e o dos outros sempre existiria.
Comecei a conversar mais com o Francisco acerca de uma certa solidão que aqui e além tornava impotente o individualismo de nos encontrarmos na grande festa. A festa que mudaria o género de vida. Em rigor, queríamos uma mudança construtiva e havia um tempo certo para evitar o suicídio das utopias que refrescam os dias quentes.
O Francisco, o mais avançado de todos nós na Universidade, costumava sossegar-me dizendo: olha que a anticiência e a antieconomia são ideologias de justificação de um sistema e ainda estamos na fase das críticas. Ainda não chegámos à « faculdade de letras e de ciências desumanas» que referiam os estudantes do Maio de 68. Olha que ainda é cedo.
Por mim, até concordava, mas espreitavam-me os comportamentos clones de uma noção de progresso que eu não entendia. Não receava as promessas, mas o prometer.
Contudo, também queria a paz, o pão, a habitação, e a saúde, a gaivota que voava, voava e sobretudo todas estas canções desde que ao adormecer me lembrasse de Fernão Capelo Gaivota no meio desta festa pá e em defesa do futuro.
Depois havia o Tejo nesta cidade maravilha. Havia o Tejo que nos protegia no levar e no trazer, no tempo do dar e do receber, exactamente o mesmo Tejo que testemunhara o bom senso no diálogo de Salgueiro Maia ali perto do Cais das Colunas.
Havia também uma ideia de humanizar uma paisagem de vida, às vezes de jeito tosco. Recordo um senhor muito distinto e que frequentava a missa do meio dia em Sta Isabel me ter dito: sabe a menina que eu até acho que Cristo era socialista, mas não o posso dizer na minha família, donde o voto caladinho é que me guardará o segredo.
Uma outra senhora espampanante nas jóias da missa de Domingo na mesma Igreja, dizia com a pose da bondade possível: ó meu Deus, afinal de que me serviu o casaco de leopoardo ao lado de tantos outros visons, se anda tanta gente com frio, coitadinhos. E acrescentava, não receiem, lá fora também é assim.
Tudo isto envolvia perigos, mas eu estava disposta a corrê-los e o meu grupo também. Achei estranho que tentassem ocupar a casa do meu irmão Zé que concluía na altura a tropa em Leiria. Estava a perder-se até a estética do comportamento? Não sei dizer. Estava de acordo com muitas coisas e pensava-as diversamente.
Nestes momentos, ou Chopin, ou Sérgio Godinho, ou os Poemas de Ponta e Mola, ou Tolstoi, alguém me haveria de valer.
Sentia que vivia num país esfomeado de oposição, em que todos eram espelhos uns dos outros e que havia que romper certas cumplicidades recíprocas, para que não existisse o poder do unanimismo que tende a tratar como criminosos, aqueles que não queriam homologar-se.
E agradava-me o paradoxo ou a sua descoberta mais viva nesta liberdade. Talvez por ele ter sido quase sempre proibido. Se calhar eu até fazia como Unamuno que não acreditava na imortalidade da alma, mas vivia como se nela acreditasse.
Assim, não pensava lá grande coisa da política ou no chegar a algo de perfeito através dela, mas achei que era necessário viver e acreditar como se achasse que sim.
Já então o fenómeno literário fazia parte do meu horizonte e ansiava que ele tivesse uma autonomia na ordem cultural e que ultrapassasse o substituto do real e pudesse, em letras muito gordas, ser sempre um título revisitado de Fernando Pessoa, aquele que sempre disse que “ o mito é o que fica quando tudo o resto desaparece”.
E lá voltava a morte e vida severina numa circularidade de amantes da margem esquerda do Sena.
E lá regressava a voz do povo do Norte de Portugal numa pulsação de acontecimentos significativos, pois que eles sabiam o quanto era preciso roer séculos para ajudar o verde, tal como a ideia de Ramos Rosa.
E lá voltava a memória do tempo futuro com partidos políticos das mil e uma interpretações, desconhecendo nós, até que ponto saberiam que o futuro é a única coisa que podemos mudar se Robert Heinlein não estiver ausente das ideologias.
A dificuldade era também a de não falarmos como os adultos que afinal não tinham tanta importância quanto nós, ainda que as maturidades nos viessem a revelar os segredos quase todos, a verdade é que de nada vale antecipá-los.
E Abril vivia-se também com todos a quererem ter conseguido fazer Abril.
A abertura das prisões proibia que o outro fosse coisa a possuir, mas a responsabilidade era de muitos modos gerida como uma suave tecnologia de maneio.
Ainda assim, não conheci ninguém que me referisse sentir na sua história uma expiação infindável de uma falta original. Não, a culpabilidade mudava de mão em relação a tudo, até para fugir ao olhar da sociedade sobre ela.
Havia também uma normalização mecânica do conceito de trabalhador e de intelectual. Recordo-me. Ponho-me dúvidas ainda hoje sobre se estas palavras alguma vez foram repensadas tal como se nos apresenta o mundo.
Do nosso grupo de cinco amigos, faltou-nos poucos anos depois, a nossa Dulce raptada por uma morte sem juízo e ainda hoje quando nela falamos, sempre sabemos que a nossa memória a segue numa qualidade de viagem que dimensões revolucionárias não explicam, e no entanto foram sentido e iniciação.
E Abril ia sendo também o beijo origem e meta, sim e seu princípio.
Deslumbrava-nos que nada continuasse como dantes.
No meu grupo de amigos éramos peritos em tornar coisas mundanas em coisas extraordinárias. Achávamos que tinha chegado a nossa hora de criarmos um templo à vida.
Em Dezembro fizemos um presépio em minha casa e a Dulce trouxe uma pequena porta de madeira. Colocámo-la à entrada da gruta e por cima da cabana escrevemos:
Eis a pequena porta por onde se pode entrar e ver o Messias.
E numa outra região doutrinal do nosso presépio de 1974, colocámos um pedaço de espelho que fingia ser lago e uma seta de papel indicava-o como sendo o local dos traços do resgate a todo o tempo.
E num futuro diverso e comovido, neste Natal de 1974, demos as mãos sob o céu livre da História.
Teresa Vieira
21.04.10
Sec. XXI
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