a Sobre o tempo que passa: Os pássaros atentos (ainda Abril). De Teresa Vieira

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

17.4.10

Os pássaros atentos (ainda Abril). De Teresa Vieira


Ele é visceralmente contra um estado de espírito como o nosso. Ele nem o compreenderia sequer. Ele sabe dar receitas como uma dona de casa, certo de que o Estado se reúne na cozinha em hora de arear o fogão.

Assim nos referíamos a Pinochet enquanto escutávamos as notícias daquele país amarrado, enquanto estabelecíamos paralelos com Salazar.

E o Luís até dizia que o mundo se construiria em liberdade, a partir dos pólos opostos plantados por estes personagens que, ainda assim, conheciam a subtileza malandra no raptar da consciência individual, razão pela qual, em protecção do futuro, deveríamos estar mais atentos.

Falávamos de Pinochet ao mesmo tempo que nele colocávamos todas as sociedades governadas por pinochês, o que nos fazia ainda mais orgulhar da jovem novidade que o 25 de Abril nos propunha em plena conciliação com uma outra vida.

Para nós, diga-se, os regimes totalitários de direita ou de esquerda eram tão cilindradores do mínimo vital de sobrevivência, quanto o era numa perspectiva trituradora, o pior de uma qualquer estrutura de raciocínio monolítico. Isso, julgávamos que tínhamos por bem sabido.

Mas, diria, que o que mais nos confundia no explicar do que íamos vivendo era, na verdade, esse sentimento que nos era comum e que nos levava à conclusão evidente de que acreditávamos bem mais na dinâmica que sentíamos na libertação, do que na tal liberdade, que ainda nos parecia demasiado estática e propriedade a mando de alguns.

Atravessávamos o Jardim da Estrela quase todos os Domingos ao final da tarde. Respirávamos as árvores com a devoção de quem tudo agradece depois de um certo momento da vida para a frente.

Um dia, sentámo-nos numa borda de relva do referido jardim e recordo-me de ter dito que tinha escutado uma estória mirabolante e que envolvia a P.I.D.E. Mais ou menos isto: a P.I.D.E prendia o senhor A e depois todas as pessoas que o iam visitar à prisão, ou ficavam presas também ou grudava-se-lhes o estatuto de suspeitos.

Queres dizer com isso que podemos estar sob espreita também daqueles que agora mandam? Pergunta a Dulce.

Não é isso, respondi, é mais o receio dos que querem subir na vida através das maneiras de salvar o mundo. Acho que são um perigo público. Acho que os sinto até nas pastelarias e, contudo, não sei dizer exactamente quem são. Receio os que leram muito e os que discutem muito os livros e os filmes e receio os das couves das províncias urbanas. E não te sei bem dizer o que este sentimento tem a ver com a prisão do senhor A e de todos os outros.

Fez-se um silêncio sem pausa nos olhares. Aí, como quem faz doação permanente da esperança, acrescentei que se calhar não era nada como eu estava a dizer, ou que se calhar nada era mais do que a praia-mar e a baixa-mar a ensinar-nos que há nas marés vivas algumas rupturas. Pois, era isso. Fazia parte da sucessão dos dias e das noites, compreender. Fazia parte do nosso projecto, compreender. Era isso.

O Rui que até então se mantinha calado, olhou-nos e disse:

- Eu ando também um pouco extravagante. Como sabem a minha avó morreu há dois meses e agora tenho pensado que ela regressa ou que me vai escrever uma carta. Isto devo ser eu na baixa-mar. Não é?

Rimo-nos todos num acto de súbito e enternecedor e inominado juramento.

E de repente era tudo tão amplo naquele Jardim da Estrela. Era tudo tão novo. Era também físico e olfactivo o tal compreender.

Estávamos ali numa condição maravilhosa, sem nome.

Por sob as pálpebras a dimensão das folhas húmidas; nos lábios, as palavras em círculo como se retornassem de uma volta ao mundo e nos agrupassem as ideias.

E afinal, enfim, nada era muito mais do que o mecanismo misterioso do teatro do mundo a entrar em funcionamento: os pássaros, esses, atentos.

Teresa Vieira

17 de Abril de 2010

Sec. XXI

(Imagem picada aqui)