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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

25.4.10

Entre animais humanos e animais não-humanos, mesmo com forma dos primeiros...


Leio cuidadosamente o "dossier" do Expresso sobre a operação dita Mercúrio, mas não do cromo. Sou obrigado a concluir sobre o supérfluo da gravitas de uma comissão parlamentar de inquérito, agora em curso de discurso. Para mim, já está tudo, mas mesmo tudo, esclarecido. Basta conseguir ler as linhas e compreender as entrelinhas e não ter que as traduzir para parlamentarês. O que apenas servirá para confirmarmos como certas operações retóricas apenas servem para se medir a distância que vai entre aquilo que se proclama e aquilo que se pratica.

Por outras palavras, com tanto jogo de cintura matosinha e micaelense, a casa da democracia pode gastar-se pelo mau-uso. Pode juntar o pior que há numa investigação judiciária sobre relações jurídicas, as tais que não coincidem, nem podem coincidir, com a vida, e o pior das parangonas do jornalismo tablóide, o que, normalmente, gera expectativas frustradas e pode vir a prostituir-se pelo abuso...

Para acrescer à esquizofrenia, só faltava que um teste de um dos muitos exames de uma escola pública de direito virasse primeira página e pretexto para um duelo de concepções do mundo e da vida, entre o Professor Doutor Paulo Otero e a jovem doutoranda Isabel Moreira, com o primeiro no ouro do silêncio e a segunda na prata da palavra jugular. Não tomarei partido, porque isto da academia não é para partir. Porque, sem ser por acaso, foram, os dois, dos melhores e mais queridos alunos que tive.

Aliás, tomei conhecimento do teste num desses almoços de camaradagem académica, por acaso, momentos depois de o mesmo ter sido lançado nos claustros da escola. Dei-lhe a importância que ele, na verdade, merece, e até gargalhei imaginativamente, observando que, se fosse aluno testado, responderia ao dito como um dia fiz a um teste do meu saudoso professor de direitos reais, Orlando de Carvalho, isto é, demonstrando que, com os dados fornecidos, haveria uma impossibilidade lógica de resolução...

Porque, mesmo com o estímulo provocatório, à boa maneira do Paulo, as relações jurídicas são impossíveis de fecundação pelas concepções do mundo e da vida do jurista que finja que não é jurista. Até porque a personalidade jurídica já não depende do nascimento completo, com vida e figura humana, conforme a letra do Código de Seabra, quando se temiam fantasmagóricas emanações entre animais racionais e animais não-humanos...

Sobre a matéria de fundo, declaro que Paulo Otero é humanamente generoso e academicamente genial, não podendo ser condicionado pela adjectivação diabólica, até pela coragem que sempre demonstrou. E nisto, a Isabel Moreira parece seguir-lhe as pisadas, até no desassombro cívico dos combates que a mobilizam. Ambos são precisos. Para indisciplinarem este cinzentismo de um politicamente correcto que até nem deixa que surja uma terceira via que nos livre da tenaz do branco e do preto, a que nos afunila em crise de convicções.