a Sobre o tempo que passa: Portus Cale, Portus Garbe. Texto meu do século passado, ortodoxamente herético.

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

26.12.10

Portus Cale, Portus Garbe. Texto meu do século passado, ortodoxamente herético.



Aqui e agora, neste Portugal cujo nome oficial foi, durante séculos, o de Portugal e dos Algarves, mas que, ainda hoje, continua a ter o carácter pluricultural e universalista da distância de tais Algarves na esfera armilar que circulariza o nosso escudo nacional.
Aqui e agora, este Sudoeste da Europa, com os seus arquipélagos atlânticos, mais do que uma nórdica finisterra, continua a ser porto de partida, cais de todas as necessárias viagens para a redescoberta de novos mundos.


Aqui e agora, neste nosso tempo, tão tecnologicamente dito como de aldeia global e, por vezes, escatologicamente qualificado como de fim da história, ainda continua por cumprir a exigência de todos nos tratarmos como filhos de Andram (Gil Vicente). Porque, como proclamava Almada Negreiros, se as frases que hão salvar a humanidade já estão todas escritas, continua a faltar uma coisa: salvar mesmo a humanidade.


Mesmo aqui e agora, eis que nos entram casa dentro, circadianamente, em zooms, replays, câmaras lentas, imagens de fome, peste e guerra, e outros sinais de intolerância, de perseguições, de limpezas étnicas. Custa dizer-lhes os sítios, porque a própria escolha do nome implica tomar partido activo pelos responsáveis por muitas matanças e certos genocídios. Mas, das margens do Jordão a Serajevo, de certas partes da Mitteleuropa às praias da Somália, de Timor a remotas paragens das Américas e dos Próximos, Médios e Extremos Orientes, Ocidentes, Nortes e Suis, eis que muitos, invocando em vão os sagrados nomes de Deus - quando não de deusas, génios e sucedâneos, feitos ideologia -, esquecem que nada do que é humano nos pode ser alheio, mesmo que fique em Tien An Men, em Díli, em Los Angeles ou no Casal Ventoso. Eis o homem de sempre, entre a lama e as estrelas, entre l'ange et la bête. O homem em guerra consigo mesmo, o homem em guerra civil por dentro de si mesmo, nas suas entranhas e na sua alma.


Não há dúvida que, de finisterra, nasceu Sagres, pelo Atlântico, a caminho do Sul. Que, outrora, partimos, ousando regressar ao ventre mátria, de nossa mãe distância, na senda daquele abraço armilar, daquele universalista quanto mais além, mais além ainda (Paul Claudel) que talvez constitua a principal significação partilhada das comunidades portuguesas, esse núcleo central da nossa memória e dos nossos valores, donde nos vem a identidade e a autonomia.


Começámos por ser Porta de Chegada daquele mundo antigo, que se reduzia ao mapa de Ptolomeu e que podemos qualificar como a Idade Mediterrânica da História. Então, nestes confins do Ocidente europeu, onde a terra acaba e o mar começa, fomos recebendo, em sucessivas vagas, a visita de fenícios, gregos, romanos, germânicos, judeus, berberes e árabes. Gentes de todas as sete partidas que, de Leste para Oeste, procurando um lugar onde, nos foram ensinando a aprender o aprender, da religião, da filosofia, do direito, da álgebra, da tecnologia.


E nacionalizando essas tendências importadas pela arte da simbiótica, eis que adquirimos técnica para nos podermos lançar numa nova partida, para esse além de nós a que podemos chamar mundialização.


Desde o século XV que, descobrindo as descobertas, nos fomos descobrindo e, com judeus e árabes, também diluídos dentro de nós mesmos, conseguimos esquecer o círculo vicioso das guerras santas contra guerras santas entre gentes do mesmo Livro, ousando fazer guerra contra as ondas do tenebroso, os misteriosos cabos bojadores e os fantasmas dos adamastores.


E assim navegando em estradas flutuantes superámos as Tormentas e unimos, pela boa esperança, o Atlântico e o Índico, transformando todo esse espaço no novo Mediterrâneo da história. Chegava a hora de uma terra maior, do tal planisfério, onde se circulava, não apenas de Leste para Oeste, mas também de Norte para Sul, com novas estrelas do norte, a que chamámos cruzeiro do sul.


Faltava, no entanto, cumprir a viagem: ir além dos cabos, da Índia, da Taprobana, esse circum-navegar que é partir para regressar ao sítio da partida. Descobrir que a terra inteira podia ser unidimensional, que a humanidade não cabia nem no ptolomeu da fantasia nem na abstracção de um planisfério; faltava descobrir que, em vez de chegar a uma índia cartografável, importava navegar, como proclamava Fernando Pessoa, para uma índia que não vem nos mapas e chegar lá em naus feitas daquilo de que são feitos os sonhos. Faltava cumprir o abraço armilar, isto é, assumir o globalismo de uma terra-esfera onde não são possíveis periferias, tenebrosos, ou aquelas ilusórias perspectivas etnocêntricas de um mundo quadrilátero, com quatro cantos onde só nos sítios onde reinamos temos a ilusão de estar debaixo do Céu.


Faltava descobrir que tanto o Leste como o Oeste, tal como o Norte e o Sul, são, dia a dia, subvertidos pela revolução dos corpos celestes, em torno de um eixo e à volta do sol. 


É esse novíssimo mundo que agora, e sempre, pode ser, se os homens forem homens.
Mas o tal diálogo de culturas e o tal encontro de religiões, à maneira dos encontros de Assis, só é possível se nos expatriarmos nas nossas próprias origens (Heidegger), isto é, se reconhecermos a contemporaneidade filosófica de todas as civilizações (Toynbee). 


Para tanto, talvez importe refazer alguns dos pretensos mandamentos das leis dos homens que todos vamos balbuciando de forma hipocritamente unanimista.


Falta uma cidade à imagem e semelhança do homem, uma cidade que não seja grande demais nem pequena demais, mas suficiente na sua unidade. Uma civitas humana onde possam conciliar-se tanto a exigência de independência de cada grupo nacional como a liberdade e a participação de cada cidadão, o que só é possível quando houver uma comunhão pelas coisas que se amam.


Falta também uma nova noção de saber que vá além do pretenso cientismo dos tempos modernos, essa ilusão da morte de Deus (ou do deicídio) que gerou o terrorismo de uma certa razão paroquial - a mesma que determinou que só existe aquilo que pode medir-se ou experimentar-se intencionalmente.


Falta, sobretudo, respeitar uma antiquíssima (mas não antiquada) concepção de homem: aquela que entende cada homem concreto como um homem completo; onde cada homem seja um ser que nunca se repete, vivendo uma história onde cada acontecimento é também um acontecimento que nunca se repete. Porque cada homem é um fim em si mesmo, só podemos salvar a humanidade se nos salvarmos, cada um de nós, fazendo aos outros aquilo que queremos que nos façam a nós. Isto é, só salvando os imperfeitos homens que temos, e somos, poderemos salvar a humanidade.


Aqui e agora, nós, os herdeiros da liberdade europeia, temos apenas de proclamar que a história está sempre a recomeçar. Que só há fins da história para os pretensos vencedores. Porque, como dizia um herético português, não será que vencer é ser vencido? Porque só fazendo o passado presente, podemos ter saudades de futuro.

PS: A concordância com algumas linhas deste exercício do começo da década de noventa do século XX pode levar à fogueira... do insulto (mais de vinte anos depois da respectiva apresentação no Convento da Orada). Obrigado, Helena Vaz da Silva! Obrigado,  João Rosado Correia!