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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

1.3.11

Nesta democracia de notáveis em que nos vamos sportinguizando...



Nesta democracia de notáveis em que nos vamos sportinguizando, apenas temos que reconhecer a desorientação que reina entre alguns segmentos da sociedade de corte capitaleira que, graças a agências de comunicação e claques, faz uma competição sobre o mais capaz de pedinchar à banca. Apesar de tanta hiper-informação opinativa da futebolítica, quem manda é o circuito fechado da chamada engenharia financeira.


Por cá, mesmo que coisas destas aconteçam, faz-se um doutoramento numa universidade espanhola, que o registo para efeitos nacionais é automático, encena-se uma historieta de faca e alguidar e sempre se arranja uma universidade qualquer onde se passa logo a director, bem como um lugar que o camarada ministro lhe ofereça numa dessas empresas públicas de economia mística...


Pobre pátria, que já não espera por D. Sebastião, mas pelos sinais de fumo que sejam emitidos depois de uma reunião entre o nosso chefe do governo e a liderança em figura humana da potência hegemónica desta regressada hierarquia das potências...


A profunda doença lusitana é a falta de vergonha com que se enfeitam os sucessivos trastes que vão engalanando os lugares do estadão, ou por este nomeados, que deveriam primar pela exemplo, de poderem viver como dizem pensar, mesmo quando não pensam. E não estou apenas a pensar em corrupção ou em incompetência.


O exagero da imagem fabricada pelos guionistas da presente teatrocracia, bem como o uso e abuso da técnica da sacanagem para a conquista dos poderes, transformaram muitas das vozes do mesmo estadão numa sucessão de nominalismos conceituais, onde os nomes já não correspondem à coisa nomeada. Daí que não seja de estranhar a releitura do tratado da "arte de furtar".


Logo, figuras que se pautem pela coragem cívica das velhas virtudes que aprenderam de seus pais possam ser considerados malucas ou inconvenientes radicais. E se não se comportarem com o come e cala do respeitinho face aos donos do poder, até podem levar da grossa, para que outros possam mais facilmente dobrar-se aos meneios feudais desta decadência moral onde nos acabrunhamos.


O apodrecimento generalizado deriva da introdução da hobbesiana lógica do homem de sucesso nos domínios da política, do ter razão quem vence, com mais razão de força do que pela força da razão, pelo que muitas actividades dolosas da violência pré-política instrumentalizam uma floresta de idiotas úteis e carreiristas cobardes. E a decadência já não tem cura pelos habituais sermões das boas intenções, até porque muitos dos púlpitos foram usurpados.


Quando os patifes são sucessivamente condecorados pelo aparelhismo que nos inundou, corremos o risco do desespero. E muitos já não acreditam em reformas que venham de dentro de tal monstruosidade, começando a desejar um estrondo qualquer que provoque o urgente sobressalto cívico.


Ainda não entrei em tal desespero. Porque sei que há uma legião de ocupantes dos lugares do estadão que bem gostaria de remover esses falsos servidores da coisa pública que, por trás das cortinas vão apodrecendo o nosso regime, não deixando que se voltem a hierarquizar as virtudes que podem domar esta decadência. E não convinha que o apodrecimento fosse um dia domado pelo acaso que as manobras dos inimigos da democracia vão semeando. 


O problema está na nação, na república ou na comunidade. Só mudando-a, pela regeneração, é que pode haver alterações no principado, aparelho de poder ou Estado, sobretudo nos veículos de estatização que temos disponíveis, como os partidos, que, neste momento, assumem o monopólio da representação política. 


Os de cima apenas reflectem o que está em baixo, ou melhor, o crivo que nos faz passar de baixo para cima, mesmo quando apenas serve para moldar, a partir de cima, o que está em baixo, neste sarilho perpétuo da decadência.