a Sobre o tempo que passa: Alegre e os diabos da direita, direitinha e direitona

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

2.4.05

Alegre e os diabos da direita, direitinha e direitona



Manuel Alegre é um dos grandes mestres na arte de escrever e pensar Portugal em português de pátria. Sendo da esquerda tribal, está para além da esquerda e da direita e merece a veneração e o respeito dos patriarcas vivos que não querem cair na tentação senatorial. Por isso, o devemos ler sempre, palavra a palavra, na letra e no espírito. Ora, não é por acaso que esse grande paradigma da nossa identidade se dedicou, no "Expresso" de hoje, ao tema da refundação da direita.

Eu vi Abril por fora e Abril por dentro
vi o Abril que foi e Abril de agora
eu vi Abril em festa e Abril lamento
Abril como quem ri como quem chora.


Excluindo o compreensível ódio que nutre por uma entidade que transformou em quase fantasma e, dando desconto aos inevitáveis preconceitos que não deixam de afectar os melhores dos nossos pensadores, não posso deixar de reconhecer que o poeta nunca deixou de ser um dos nossos excelsos mestres na conimbricense arte dos bons malandros.

Com efeito, se concordo com quase todos os "entretantos" do artigo, não posso deixar de esboçar um sorriso para o ínvio das conclusões, à boa maneira do candidato à liderança do PS que acabou derrotado por José Sócrates. Concordo quando Alegre diz que a direita portuguesa (d.p.) "não perdeu apenas o poder, parece ter ficado sem estratégia, sem discurso e sem alma". Mas tenho que notar, desde logo, que Alegre reduz a direita ao que lhe convém, como inimigo da direita. Limita-a, nessa dogmática definição, aos apoiantes institucionais do PP de Portas e do PSD de Durão e Santana. Incluindo os eventuais apoiantes da recandidatura de Cavaco Silva.

Eu vi chorar Abril e Abril partir
vi o Abril de sim e Abril de não
Abril que já não é Abril por vir
e como tudo o mais contradição.


Concordo que a tal d.p. de Alegre pode estar marcada por um "estalinismo ao avesso" e por muito "maniqueísmo". Mas não posso deixar de lavrar o meu mais vivo protesto por esse ensaio de jesuítica silogice, quando se reduzem as esperanças de direita àquilo que simboliza em Maria José Nogueira Pinto ("Essa direita tem estratégia e tem discurso. Mas já não tem regime.") e no Padre Serras Pereira ("Essa direita também tem uma estratégia e discurso. Mas, felizmente, já não tem Igreja.").

Minimizando o trono, ao fantasma do salazarismo, e o altar, ao modelo de certo ortodoxismo integrista, Alegre transforma a esquerda num oceano tão amplo que nela cabem tanto Diogo Freitas do Amaral como D. José Policarpo, pelo que talvez acabe por pisar a estratosfera da ilha inventada por São Tomás Morus e por confundir a d.p. com o Diabo, num maniqueísmo explicável pela manobra daquela esquerda dominante nos meios de comunicação social que, de acordo com as velhas regras da "agitpro" inventa a direita que convém à esquerda instalada.

Vi o Abril que ganha e Abril que perde
Abril que foi Abril e o que não foi
eu vi Abril de ser e de não ser.


Com efeito, e sem aceitar a qualificação dogmática dado por Alegre ao garbo da Zezinha e à coragem do franciscano não-miliciano, direi que o território a analisar no chamado espaço de direita, a tal do aqui e agora, talvez tenha mais mundos e mais tribos, que parecem não caber no magnífico olhar de um dos nossos maiores poetas vivos, tal como também não são captáveis pela argúcia de anteriores fundadores do Movimento de Acção Revolucionária. A não ser que Alegre subscreva o preconceito, também magistralmente palavrado por Baptista-Bastos, no "Jornal de Negócios" de hoje, segundo o qual, "antes de ser uma cultura, a Direita é uma concentração de poderes, com interesses caracterizados por uma ovípara ganância e por uma desmedida sede de domínio, de autoridade e de jurisdição" e que as eventuais novidades que, dela, têm aparecido não passam da "velha Direitona, mascarada de Direitinha".



Julgo que pode haver uma direita, ou uma não-esquerda e não-equidistância centrista, que diga povo, que diga história e que diga liberdade como aprendeu nas palavras de revolta de quem escreveu a Carta do Manuelinho de Évora. Pode haver uma direita que tenha como símbolos os oposicionistas de direita ao regime salazarista e que até os mais empedernidos dos antifascistas, medalhados pelos vencedores deste regime, reconhecem.

Pode haver um direita da liberdade viva que esteve com Alegre, mas não com Baptista Bastos, nos grandes combates de 1974 e 1975, bem como na posterior institucionalização da democracia pós-revolucionária, e não apenas no conjuntural genético das lutas anticunhalistas e anti-extrema-esquerda do PREC. Pode haver uma direita que assuma as bandeiras de 1820, 1836, 1846 e até com alguns a saudarem o 5 de Outubro de 1910. Por causa de Machado Santos, Sidónio Pais, António José de Almeida, Jaime Cortesão ou Brito Camacho.

Abril de Abril vestido (Abril tão verde)
Abril de Abril despido (Abril que dói)
Abril já feito. E ainda por fazer.


A direita que diz Abril como compromisso vivido, que diz que Abril é nosso, isto é, da esquerda e da direita, radicalmente democráticas, radicalmente pensadas, radicalmente vividas, em nome do pluralismo e da sociedade aberta, não precisa de pedir certificados de cidadania a Manuel Alegre e a Baptista Bastos, elogios a Eduardo Lourenço ou citações de ministros de Salazar feitos ministros ou altos hierarcas, postos em comissão de serviço pelo Partido Socialista e pelas afundações que, em torno dele, circum-navegam. Essa direita não está por fundar. Tem fundamento no sufrágio popular, na revolta popular, no sonho popular. E até conseguiu vitórias em cerca de metade dos actos eleitorais realizados depois de 1974.

Ora, não é pelas andorinhas de Sócrates e Amaral terem passado dessa direita para a actual esquerda dos vencedores que podemos fazer primaveris revisionismos típicos do salazarismo e dos estalinismos. Basta assinalar como estão orgulhosos certos sujeitos da direita que, como eu, votaram Soares contra Freitas e até, algumas vezes, depositaram o seu votinho em Manuel Alegre, para poderem vacinar a pátria contra as direitinhas e as direitonas que convêm àquela esquerda que agora se delicia com a ilusória leitura da história dos vencedores, rasgando muitas páginas da história passada, para continuar a poder contar a história do capuchinho vermelho, do lobo mau, do papão que come antifascistas ao pequeno almoço, torquemada e tal.

É por isso que daqui a pouco vou tentar assistir à cerimónia evocativa de Rodrigo Emílio, onde vai falar António Manuel Couto Viana, que nunca votaram onde eu votei, mas que são da tal não-esquerda de Ezra Pound e Fernando Pessoa, os tais que são todos dos melhores poetas que nos deu o século XX. E tenho a certeza que o próprio Manuel Alegre, se convidado, estaria presente para celebrar a palavra Portugal, em comunhão de sonho.

Por mim, apesar de não ser da direitinha do tal trono do regime salazarento, ou da direitona do altar não policarpizado, satisfeito com o pontapé no rabo que o povo deu ao Durão, ao Santana e ao Paulinho, nem por isso passarei para a esquerda. Quero continuar a ter a coragem dita de esquerda de me dizer de direita. E a ler Manuel Alegre. Sempre. E Baptista Bastos, quase sempre.