a Sobre o tempo que passa: Nosso humor merancórico...

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

1.4.05

Nosso humor merancórico...



Tudo estava enevoado pelo molha-tolos que me dava a bruma do ensimesmamento. E nem sequer senti o deslumbramento da foz, perdendo-se na fundura do mar bravo. E assim larguei os pinheirais de bruma, só começando a sentir azul bem perto de minha pequena pátria. E bebi a força do rio que me deu pátria, as salinas, a mansa foz, as cores vivas do sol na serra que tem nome de boa viagem.

Porque em todos os portos que foram e são partida, há sempre desses montes que nos dão memória do lar, há sempre desses sinais de terra-mãe, aqueles de quem nos despedimos em dor, prometendo ter que voltar. Porque ser português antigo, português de sempre, é lançar semente no mais além, sempre à procura de um lugar onde, nessa nostalgia activa de saber que só há lugar no regressar ao sítio de quem sempre fomos.



Que viver é ser procura, permanente reinvenção a que chamamos saudade, o tal "humor merancórico", do português de antanho, conforme as palavras que nos deixou el-rei Dom Duarte. Há sempre uma boa viagem que nos dá regresso, nesse escrever efémero nos intervalos das partidas e dos regressos, no tal vaivem em que se vai traduzindo a tal procura de quem somos e a que sempre temos que regressar.

Somos quem sempre fomos e postos na procura do dever-ser que há cá dentro, nesse sonho que sempre foi a raiz do mais além. E pelo abrasamento nos ficamos, em movimento, temendo olhar o sol de frente, temendo percorrer os longos vales da procura, num tempo que há-de ser.



Apetecia dizer e escrever o que tenho medo de, até aqui, registar. Apetecia apenas dizer meu sonho, para que amanhã chegue depressa. Apetecia assim conversar, no sem porquê de conversar por conversar, para que possa brilhar este sorriso de viver. No navegar num tempo vivo, ganhando a ilusão de a noite não ter fim. Apetecia, assim, continuar, vivendo a fantasia desta procura de me encontrar. Apetecia descobrir esta cidade que reprimi, dizer todas as palavras proibidas que, em segredo, me sucedem. Viajar todos os recantos, todos os sítios resguardados que ainda não sei. Apetecia, em suma, viver e reviver os longos silêncios desta procura.

Sonho e sofro o reviver, os passos de um novo tempo que, por dentro, já é ser. O tempo de um templo por cumprir que me volva de viagem. O semear na terra prometida o que tem que ser um lugar onde. Apetece fugir para me encontrar. Apetecia, em suma, dizer mar, no largo espaço do poente.