O jovem Guterres e a Mocidade Portuguesa
O semanário "Independente" acabou de descobrir o que há muito estava descoberto: António Guterres foi monitor dos cursos organizados pela Mocidade Portuguesa, ditos de "formação juvenil" que, aliás, começaram por ser crismados como de "formação apologética da juventude". A coisa já tinha sido confirmada pelo próprio e o assistente nacional da organização, Padre Alves de Campos, também já tinha comentado a matéria, contando os pormenores da colaboração do ex-primeiro-ministro.
Para os incautos das parangonas, parece que a tal organização nacional se assemelhava, nos anos setenta do século XX, à juventude hitleriana ou a uma das jotas de hoje, não se reparando no modelo legal vigente, nomeadamente na integração de todos os professores da disciplina obrigatória de "moral e religião" no esquema centralizado da chamada "assistência nacional da Mocidade Portuguesa".
O subscritor destas linhas, quando tinha quinze anos de idade e frequentava o 5º ano do então liceu, acabou por ser uma das cobaias do primeiro curso em causa, realizado em Sagres. Fui, com efeito, um dos cinco miúdos do Liceu Normal D. João III de Coimbra seleccionado para a experiência, cabendo tal processo ao professor de moral do establecimento, Padre Eugénio. Aliás, o aliciante do processo passava pela circunstância de os primeiros cinco classificados nacionais poderem visitar Roma e ver o papa, então Paulo VI. E lá passei quinze dias em Sagres, a receber aulas, nomeadamente do célebre Padre Gamboa, então capelão da Academia Militar, e do Padre Francisco Inácio Pereira dos Santos, da Guarda, dois nomes ilustres que tanto marcaram a minha formação, tendo como monitor o célebre Alberico, um dos nomes grandes do actual grupo de Pinto Balsemão, líder do chamado "Jornal da Região". Guterres ainda não era controleiro do processo, porque senão teria a cama cheia de cardos do promontório, danados que estávamos com a disciplina e o horário que impunham a tais adolescentes que não podiam ter escapadelas para a praia ou para fumarem um cigarrito, dado que a mania das discotecas ainda não vigorava.
Apesar de ser dos mais novatos, tive a honra de ficar nos cinco primeiros classificados e de, assim, poder ir a Roma, pelo que até se deu a circunstância de ficar, então, a conhecer melhor a capital de Itália do que a capital do meu país. Lembro-me de, para aí, ter voado num desconfortável avião de paraquedistas da nossa Força Aérea, recebendo desta forma o meu baptismo de voo e viagens ao estrangeiro. Também me lembro de quando estava prestes a embarcar na Portela, ter reparado que, além dos cinco premiados, voaram também outros colegas que tinham tido piores classificações, mas que, graças a boas relações com gente do regime, também foram "premiados", sendo um deles o filho do próprio comissário nacional da Mocidade Portuguesa, cujo nome nunca esqueci, Carlos Gomes Bessa. Assim fiquei a conhecer aquele ritmo de um regime, onde todos eram iguais, mas sempre havia alguns mais iguais do que outros.
Por acaso, a malta do liceu de Coimbra portou-se tão bem que até conseguiu alcançar três dos cinco primeiros lugares do processo. É evidente que ainda guardo quase todos os troféus que trouxe de Roma, desde uma caneta a uma medalha que nos foi dada pelo Papa. Até conservo nos arquivos, uma fotografia que tirámos com o papa e que veio publicada no jornal do Vaticano. Foi intensa essa experiência, onde pela primeira vez vi "slogans" políticos nas paredes e até recordo o anedótico de poder beber uma "Coca Cola" ou adquirir uma revista erótica que tanto êxito, depois, causou no liceu.
Apesar de tudo, não fui, depois, convidado para monitor dos cursos em causa, ao contrário de um colega meu de Coimbra, futuro militante do MDP/CDE, que deve ter tido posteriores contactos com António Guterres. Conservo ainda os boletins dos cursos e, se vasculhasse os meus arquivos mortos, poderia listar as centenas de jovens estudantes do secundário que por lá passaram, em regime de selecção pelas estruturas directivas dos liceus. Recordo, contudo, um monitor chamado Moita Flores, que, devido à respectiva notoriedade actual, seria interessante ser entrevistado sobre a matéria.
Poderia também indicar muitos outros militantes de actuais partidos de esquerda que por lá andaram, incluindo ilustres activistas do PCP e da extrema-esquerda. Apenas me espanta que nenhum deles queira testemunhar sobre essa "denunciação" do semanário "Independente", digna da melhor tradição inquisitorial e pidesca, mas onde, para além dos gémitos imensos das parangonas, tudo não passa de mais um parto de um ratinho, com a direita a repetir contra a esquerda, os métodos que caracterizaram o salazarismo e algum PREC.
António Guterres pode ter muitos defeitos e outras tantas virtudes, mas se é esse o pormenor negro da respectiva biografia, eu que sou seu adversário político, tenho de reconhecer que se trata da descrição de uma virtude, reveladora da coerente formação de um católico militante.
É evidente que a Mocidade Portuguesa não era inocente. Nem sequer a assistência nacional. Eram estruturas que serviam o sistema educativo do regime e divulgavam doutrinas e princípios de conciliação entre o trono e o altar dessa época. Se quiserem acusar Guterres, digam, antes, que ele não foi indicado pelo poder político, mas antes por um poder eclesiástico que tinha como chefes o Cardeal Cerejeira e o Papa Paulo VI. Mas tal modelo era tão "estadonovense" quanto o próprio sistema oficial de ensino, com os respectivos programas e livros únicos. Só posso dizer que, nesse universo dos cursos de formação juvenil, havia bem menos propagandismo do que na disciplina de "organização política e administrativa da nação". Eram pelo menos, mais próximos da mentalidade democrata-cristã...
O vicioso do processo talvez residisse na santa aliança estabelecida entre as estruturas eclesiásticas e as estruturas políticas. Coisa que nunca parece ter incomodado os ilustres senhores ministros e senhores altos hierarcas do regime deposto em 25 de Abril de 1974, nomeados ministros e altos hierarcas do presente regime, por escolha do Partido Socialista.
Por mim, guardo boas recordações da formação recebida em tais cursos e, se tivesse os arquivos em dia, até teria todo o prazer de voltar a publicar um artiguinho que editei nos boletins dos antigos alunos do modelo, todo ele eivado dessa doutrina personalista que ainda conservo, apesar de me ter acontecido o que denunciava Lutero, sobre "um bom jurista, um mau cristão". É que, apesar de já não ser jurista, deixei de me poder dizer católico, mantendo, contudo, o essencial do humanismo que, por lá, em boa hora, recebi. Agradeço, portanto, aos colegas de António Guterres a boa "monitoragem" que aí conduziram, mas nem por isso também fiquei de esquerda, nem à maneira de Moita Flores.
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