a Sobre o tempo que passa: A Natércia Freire, minha mátria poesia, palavras musicadas e caminhos de procura que perduram na eternidade das sementes

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

20.5.05

A Natércia Freire, minha mátria poesia, palavras musicadas e caminhos de procura que perduram na eternidade das sementes



Logo, na sessão de homenagem a Natércia Freire, escolhi dela o seguinte poema:

Crepúsculo

Uma Pátria de angústia
No lento anoitecer
Coroa o dia álgido
No verão de ardentes sóis.
Vão morrer os heróis.

A voz crepuscular
Dos campos e das ondas
Agoniza comigo.
E promete e promete
Imensas alquimias
Em braços de outros Dias.
Em bocas de outro Mar
Os deuses vão voltar.

Há quanto tempo eu estou
Marcada a fogo e ferro,
Na paz do meu desterro,
Na morte sem enterro.

Oiço-te, Mãe, na bruma
Tangendo às nossas filhas
Um instrumento de espuma
Forrado a sumaúma...

E ele, o meu ser de gelo,
O meu senhor de frio
Amarra-me o cabelo
Aos flancos do navio.

E tentarei ser-lhe fiel, lendo as seguintes palavras da minha autoria:

Natura rerum

Que tempo fará quando voltares?
Que sonho será quando for dia
e, à beira de quem fomos, me regressar?
Há uma força antiga,
desmedida,
que as forças que penso ter
já não conseguem deter.
Uma força que não tem tempo,
que não tem fim,
uma força que, d’além, me dá além.
Uma excedente saudade,
que me passa, trespassa
e sobrepassa.
Não é tropismo,
reflexo condicionado,
automatismo.
É uma força bem mais forte,
bem mais funda.
Tem a autenticidade
das nascentes de água cristalina,
a calma serena dos poentes,
o saudoso tamanho
das mais pátrias raízes
e a maternal sombra
das árvores centenárias.
É uma força serena e perfumada,
tão antiga e tão suave
quanto o húmido musgo
das pedras do velho muro
que bordeja meu jardim.
E nesse íntimo segredo,
que, ferindo, me segura,
há um dinâmico imobilismo,
a pétrea semente
de um tempo antiquíssimo,
o virtuoso, imanente,
a natureza das coisas,
que procuro.
A pensada raiz da emoção,
que, em carne viva,
pelo sonho, me sustenta.
Humano, demasiado humano,
tão simples como o fluir do tempo,
o seguir a brisa que me leva
à própria raiz do vento.
A força de dizer sol,
de dizer mar,
de dizer pinhal,
onde volta a ter sentido
o sítio para onde vou.


(Maltez, José Adelino, Sphera, Spera, Sperança, Sopas de Letras, 2002)