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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

19.5.05

Os kumba de cá em seu governo dos espertos...



Numa determinada instituição pública universitária, uma equipa directiva que está ininterruptamente no poder desde o começo da década de sessenta do século XX, onde, ao pai pretensamente carismático, sucedeu um filho, marcado por outra das formas de legitimidade inventariadas por Max Weber, mas não pela racional-normativa, houve, recentemente, eleições que, dentro das regras do jogo vigente, apesar de não poderem ser leais, justas e livres, deram uma vitória expressiva aos oposicionistas de um ilustre presidente do conselho directivo que, apesar de "reeleito" em Abril de há dois anos, depois de outras tantas "reeleições", teve a otomana manha de só tomar posse em Setembro de 2003.



Agora o dito cujo, em suas notas do tempo perdido, diz que só permitirá a tomada de posse dos eleitos em Setembro de 2005. E invoca o princípio da legalidade. Qualquer semelhança com Kumba Ialá, na sua autoproclamação, não nos parece pura coincidência se repararmos na teorização de Hannah Arendt sobre o chamado governo dos espertos, típico das administrações coloniais, onde se aplica a lei para os adversários às segundas, quartas e sextas e se dispensa a lei para os amigos às terças, quintas e sábados, enquanto, aos domingos, os administradores de posto e os capatazes fazem circulares de interpretação da mesma lei.

Julgo que o princípio do Estado de Direito, introduzido pela Constituição de 1976, na revisão de 1982, alterou o habitual lastro interpretativo que era timbre dos chefes de repartição, dos chefes de posto e dos capatazes. Agora, a voz do chefe depende do regulamento, o regulamento depende da lei, a lei é inferior ao direito e o direito tem que seguir a justiça. Como ensina Arendt, os burocratas dos defuntos regimes imperiais que, ao contrário dos agentes do totalitarismo, apenas exerciam uma opressão externa, deixando intacta a vida interior, viviam numa espécie de "domínio perpétuo do acaso" e de "governo dos espertos", onde o burocrata tinha a ilusão da acção permanente e onde não se notavam princípios gerais de direito por detrás dos decretos...

Talvez não valha a pena continuarem a edição da música celestial de um pretérito julgado perfeito, através de tempos verbais de um pretérito imperfeito, dado que o condicional não é futuro. Foi-se!

Já agora uma pequena anedota verídica que me foi contada pelo chefe dos kumbas que, quando era ministro do antigamente, ao solicitar a Salazar que um alto hierarca continuasse em funções funcionárias para além dos setenta anos, recebeu deste o seguinte remoque: "e quem é que nos diz quando ele volta a fazer setenta anos?". O chefe do ministro em causa, que não era Mário Soares, só deixou de fazer sucessivos setenta anos quando caiu da cadeira. Aquele que, antes dos setenta anos, contava esta anedota já fez setenta anos não sei quantas vezes e mantém-se em funções funcionárias de chefia dos contínuos já já vai quase década e meia. O subchefe deste último está a uns dias de os fazer, mas prepara o terreno para repetir o seu inspirador. Apenas desejamos que não caia da cadeira. Pelo ridículo! Para anedota já basta o segundo. Para persigangas, fartam todos eles.