a Sobre o tempo que passa: Da nostalgia pelo bem

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

10.8.05

Da nostalgia pelo bem



Imagem de San Coronado


Quando a política de campanário nos vai fragmentando em facciosismos e pequenas zangas de comadres, onde não faltam os potentados dos pequenos e velhos padrinhozinhos. Quando o futuro se confunde com cinematográficos regressos ao passado e quase todos se diluem na procissão carneiral dos colectivismos morais, importa reparar que à míngua de pátria é o povo comum que começa a perder a vontade de sorrir. Quando é a esperança colectiva que vai definhando, face à falta de sentido cívico e ao vazio de justiça, começamos a notar que surge uma sociedade de porcos-espinhos, onde em vez do individualismo da criatividade pessoal e das boas sociedades de egoístas, começa a marcar ritmo de desespero o "vê se te avias" e a moral do sapateiro de Braga, onde tanto não há moralidade como ninguém come nada.

O próprio discurso sobre o bem comum foi esfacelado e usurpado por vendedores de banha da cobra que o encomendaram aos assessores honestos que recrutaram no mercado do proletariado intelectual. Os tais para quem a moral é uma lei que eles impõem aos outros, mas de que se pensam dispensados pela graça do poder, esquecendo-se que não podem invocar tais normas de autonomia os que são exemplos de falta de autenticidade. E não nos parece que os anunciados candidatos à reflexão presidencial tenham suficientes saudades de futuro para provocarem o urgente acordar deste nebuloso letargo em que nos vamos enrodilhando.



Imagem de San Coronado

Este profundo estado depressivo em que nos deglutimos nada tem a ver com as tensões do tudo e do seu nada de anteriores crises colectivas, quando a alma colectiva ainda não era pequena e nos entusiasmavam os sonhadores activos. Agora, vive-se uma espécie de definhamento com barriga cheia e luxo à farta, com que vamos alimentando a ilusão de ainda sermos uma comunidade nacional. Neste ambiente circense, onde as montras das principais estações televisivas exploram de forma indecorosa a miséria alheia, como se viu na espectacularização do drama dos incêndios, surge também a episódica ilusão da sociedade de casino, nesta loucura de muitos pensarem que podem ser aleatórios milionários, nunca reparando que quem ganha é sempre o dono da roleta.

Não se vislumbra no horizonte um qualquer indisciplinador colectivo que nos liberte da modorra decadentista em que vamos quase vegetando. Quando a justiça e o consequente princípio da igualdade pelo mérito, conforme a democracia evangélica e a ética republicana, deixam de ser as chaves da abóbada social, por mais paredes que se ergam em "outsourcing", nunca a casa conseguirá completar-se em harmonia, mesmo que seja a das capelas imperfeitas.