a Sobre o tempo que passa: novembro 2005

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

30.11.05

1 de Dezembro, a comemoração inconveniente



Apetecia retomar texto de há um ano, mas desta vou mais fundo, em homenagem a Agostinho da Silva, e republico um manifesto que emiti em plena coabitação do cavaquismo governativo com o soarismo presidencial:


Amanhã, vai acontecer mais um 1º de Dezembro da história de Portugal, pouco tempo depois de Felipe Gonzalez e Cavaco Silva terem concertado em Lisboa a necessidade de instauração de um Mercado Único Ibérico, para ensaiarmos 1992, e numa altura em que grandes figuras das letras portuguesas contemporâneas, como Natália Correia e José Saramago, vivem em pleno idílio "iberista", sem Fernando Reino em Madrid e já esquecidos das profecias do Embaixador Franco Nogueira.

Dizia o meu livro de história da instrução primária que no primeiro dia de Dezembro de l640 um grupo de conjurados tratou de restaurar a independência nacional, expulsando os Filipes do trono de Portugal. Mas, cerca de três séculos e meios volvidos, eis que a República Portuguesa e o Estado Espanhol acabam de aderir à U. E. O., depois de , nestes últimos anos, se terem também irmanado nas Comunidades Europeias e na Organização do Tratado do Atlântico Norte.

Não há dúvida que comemorarmos o 1º de Dezembro com a lógica da padeira de Aljubarrota constituiria uma clara afronta aos sinais dos tempos. Seria recordarmos o nosso provérbio que diz que de Espanha, nem bom vento nem bom casamento e até certo slogan castelhano que proclama uma Espanha una e grande, de mar a mar, sem Portugal nem Gibraltar. Seria continuarmos a viver de costas uns para os outros, recordando a entrevista concedida por Alfonso XIII ao nosso Diário de Notícias, onde o monarca espanhol considerava Lisboa como o porto natural de Madrid, ou a exortação aos portugueses de José António Primo de Rivera, onde nos incitava a seguir o exemplo de Fernão de Magalhães.

Acontece que Portugal e o Estado Espanhol podem orgulhar-se do facto de serem os únicos vizinhos europeus que há mais de cento e oitenta anos não têm entre si qualquer conflito armado - desde a chamada Guerra das Laranjas, quando perdemos Olivença.

Sucede também que , pela primeira vez, desde a dinastia filipina, as duas entidades estaduais são parceiras das mesmas estruturas supranacionais militares e económicas.

Comemorar o 1º de Dezembro, neste contexto, pode, portanto, constituir um atentado contra o espírito dito de 1992 e contra os nossos recentes defensores tardios dos Estados-Unidos da Europa. Talvez fosse muito mais conforme aos "ventos da história" recordarmos que os Filipes foram uma espécie de precursores da CEE e que só não conseguiram atingir o alvo por causa da derrota da Invencível Armada.

De qualquer modo é forçoso reconhecermos que só distorcendo a realidade histórica poderemos dizer que durante os sessenta anos de reinados filipinos Portugal perdeu a respectiva independência. Durante esse período, conforme as linhas constitucionais delineadas nas portuguesíssimas Cortes de Tomar, sempre mantivemos órgãos de governo próprios, o que foi sufragado pelo melhor da inteligência portuguesa da época, com destaque para Frei Bartolomeu dos Mártires ou D. Jerónimo Osório.

Também poucas vezes se salienta o reverso da medalha, ou seja, a influência portuguesa na "eurocracia" da época , bem como o facto de terem vindo para Portugal eminentes vultos da cultura espanhola, com destaque para Francisco Suarez, o Doctor Eximius, que, entre nós, publicou as suas principais obras e cujos restos mortais permanecem em Lisboa.

Só que os enviados culturais dos Filipes a Portugal, nomeadamente os homens da escolástica peninsular e a própria Companhia de Jesus, vieram semear a revolta e voltar o feitiço contra o feiticeiro. Os jesuítas estão por detrás de todos os Manuelinhos de Évora e os suarezistas estruturam toda a teoria da soberania popular que vai servir de argumento a João Pinto Ribeiro, Francisco Velasco Gouveia e demais juristas da Restauração, que levam à prática grande parte das teses que estiveram na base da Revolução Francesa, com século e meio de antecedência.

São estas mesmas teorias que ainda justificam o nosso Estado-Nação e que não impedem uma integração no grande espaço europeu. Ai da Europa democrática se confudir o nacionalismo da "mais antiga nacionalidade da Europa" com os nacionalismos dos impérios frustrados, estes, sim, os reais inimigos da restauração da unidade espiritual da Europa.

No nosso 1º de Dezembro a Espanha só entra por acaso. Calá-lo é trair o cerne da democracia portuguesa em nome do "departamento de secos e molhados da Europa" e não percebermos que, neste ponto, não é Portugal que se deve integrar na CEE, mas sim a CEE que se deve integrar nele, como diria o mestre Agostinho da Silva.

Os mais desleixadamente "ceeistas" que leiam por exemplo uma pequena obra intitulada A Justificação Jurídica da Restauração e a Teoria da Origem Popular do Poder Político, Lisboa, 1964. O respectivo autor chama-se Mário Soares.

Cruzes, canhotos!



Andam aflitas as nossas almas agnósticas, com que muitos confundem a laicidade da república, face às reacções de certos militantes católicos quanto à nebulosa proibição de crucifixos nas escolas, executada por certos burocratas do ministério educativo, numa dessas tradicionais manifestações de intolerância levada a cabo por espíritos de geométrica tradução em calão do jacobinismo.



Eu que não sou filho dilecto do povo católico, que a si mesmo se define como povo de Deus, julgo que a exibição numa escola pública desse símbolo religioso faz parte de um conceito activo do princípio da liberdade religiosa e está plenamente de acordo com os princípios fundamentais da tolerância. Neste sentido, não subscrevo as declarações da deputada do Bloco de Esquerda (BE), Ana Drago, no programa da SIC Notícias, moderado por Mário Crespo, onde a deputada referiu que, “se numa escola do interior estivesse pendurado um enchido, um chouriço ou qualquer outra coisa ligada à nossa cultura popular ninguém levantava a questão”.



Até poderia dizer que as quinas do nosso símbolo nacional, enquanto representação estilizada da cruz, elevaram a mesma à dignidade de religião secular. A própria Cruz Vermelha não é no âmbito da nossa civilização ocidental um Crescente Vermelho, ou uma Estrela de David da mesma cor, e ainda não vi o grupo da deputada Ana Drago propor a mudança dos símbolos nacionais ou das doze estrelas da Europa, também estas retiradas de um vitral da Virgem da catedral de Estrasburgo. Qualquer dia até teríamos de escavacar os monumentos manuelinos para deles retirarmos a martelo as cruzes de Cristo que levaram o abraço armilar ao mundo inteiro.



Os símbolos plebiscitados plurissecularmente e referendados pelo próprio sangue dos que morreram pela pátria fazem parte daquele sagrado, sem o qual não há sentido de república. Ninguém morre por chouriços, sardinha assada ou bananas. Ai de quem não perceber que só pode crescer para cima se crescer por dentro.

29.11.05

Vencendo as nuvens de que se faz viagem



Eis-me sentado, em espera, à tua espera, aqui, no meio de tanta gente onde até somos ninguém. Aqui à espera, à tua espera, como se fosse a primeira vez. Aqui sentado, em espera de alguém que há-de vir do mais além, vencendo as nuvens de que se faz viagem. Aqui sentado, entre vidraças abertas e gente em seu vaivém, aqui sentado, à espera, à tua espera, nas asas deste sonho reencontrado.

Que flor, que rio, quantas areias virão dentro de ti? Que névoa se guardará na curva terra de teu colo? Que tempo fará quando for dia e as mãos do sol, pela manhã, abrindo as janelas da cidade, nos inundarem de luz? Que mares trarás nos braços redes com que vais colhendo os restos dos naufrágios a que nos demos? Que tempo fará quando voltares e, à tua beira, sorver o tempo de sonharmos?

Aqui à espera, em tua espera, escrevendo por ter de escrever o que vou guardando, sem saber. Aqui à espera, em tua espera sorvendo assim o fogo lento deste dia. Aqui à espera, em tua espera, onde sei quem na verdade sou, onde, perdido, me encontro e reencontro e assim preso, me perco e redifino, no espaço livre que me dão teus braços. Aqui à espera, em tua espera, sorvendo a cartografia sentida da memória, neste mapa de silêncio que me dá força de chegar.

Vieste em deserto, assim dentro de mim e, no fundo do tempo de quem sou, longo mar me deu sinal, imensas dunas divagando nas veias de um tempo feito semente. Sim! Foi aqui e agora, num pedaço de tempo a que me dei, foi aqui e agora num mais além guardado e segredado, neste verde onde recolho o rumo que me segura, quando apetecia que o tempo se detivesse no longo declive de uma qualquer duna, que a tâmara trouxesse o sabor maduro que me deu a sombra de teu colo. Porque éramos desterro e desafio e, livres, nos prendemos a quem somos.

"Libido dominandi", neo-sidonismo encapotado e salazarismo democrático, com saldos de "marketing" político



Porque as notícias continuam a não ser notícias prefiro recordar meu fim de semana de visita a feiras da cidade, entre a de agricultura biológica, com hamburgas de porco preto, chamuças do Nepal e chás de alecrim e gengibre, que nos dizem pôr o sol por dentro, bem como os "dips" de azeite varejado pelos próprios, com muito regresso ao sabor da terra sã, procurando compensar as casas da cidade à espera de chuva, mas sem se cair no exótico do discurso contra a globalização neoliberal que só compra produtos nas lojas do comércio dito justo, que é coisa de loja dos trezentos para "radicalchic" do politicamente correcto.



Reparo que as viagens dos candidatos ao país profundo, revelam a falta de adequada mobilização por parte da Joana Amaral Dias, da Cátia Guerreiro e do Pacman, porque a fauna que recebe os pretensos pais da pátria se reduz ao habitual frequentador de comício, com predomínio dos sessentões, até porque os chamados ministérios educativos ainda não lançaram a urgente campanha de cidadania que leve os jovens à inscrição no recenseamento eleitoral. É por isso que no domingo fui às rolas dos Moinhos de Santana, em busca do habitual cozido à portuguesa, com enchidos da Beira, num ambiente marcado pela imagem que encima este parágrafo, nesta memória de paisagem saloia no Alto do Restelo.



Finalmente dei um saltinho à FAC, que é a AR.CO a que os portugueses têm direito, ficando perdido no meio de tanto quadro, tanto pincel e tanta criatividade,onde não faltava uma caricatura de Fernando Aguiar sobre a vontade de poder que decidi não censurar. Reparo, contudo, no modelo de propaganda dos candidatos presidenciais, especialmente no paradigma Cavaco, que, na gestão dos silêncios, tenta traduzir em calão o perception's management à Karl Rove, onde não faltam as tais visitas ao país profundo, mas onde, na prática quotidiana, a teoria tende a ser outra, pelo recurso aos saldos de um marketing político que usa e abusa do slogan politiqueiro.



Porque o subliminar de um neo-sidonismo encapotado, com pitadinhas de salazarismo democrático, faz como Sócrates nas legislativas: aproveita a embalagem da inércia. E até pinta de fresco propagadismos dos anos sessenta do século XX, entre o "I have a dream" de Luther King, dito agora "tenho uma ambição", e as quase novas fronteiras do John Kennedy.



Afinal os três principais presidenciáveis são o próprio situacionismo em figura humana que fazem discursos contra a degradação da presente democracia quando eles são os criadores da criatura que agora fingem rejeitar. Porque o Estado a que chegámos, apesar de ser grande demais na subsiodiocracia e na empregomania, não é suficientemente forte para combater a corrupção, a evasão fiscal ou o indiferentismo que nos seca a cidadania. Porque o sistema de financiamento da política, da partidocracia às campanhas presidenciais, passa pela habitual complacência do Bloco central de interesses face aos patos-bravos autárquicos, aos "lobbies" das consultadorias e empresas de estudos, com passagem pelo poder banco-burocrático que os encima e onde participa a procissão dos intelectuais que andam de mão estendida ao subsídio ou à avença.

28.11.05

Falta ainda muita viagem por cumprir...



Falta ainda muita viagem por cumprir para que os homens de boa vontade possam passar as tormentas a alcançar a boa esperança de um caminho para a humanidade, quando o ser não for medido pelo ter e o amor vencer a guerra.

Quando tratarmos o outro como o próximo, o vizinho, o conterrâneo, o compatriota, o nosso irmão. Quando, sem negarmos as pequenas pátrias e as pátrias maiores, soubermos ascender à terra dos homens, à cosmopolis e pudermos dizer, como Pessoa, tudo pela humanidade, nada contra a nação, mas desde que cada nação seja entendida como caminho para uma super-nação futura. Quando vencermos os impérios que nos invadem, de forma visível e invisível, pelo mercado ou pela colonização cultural. Quando, de mãos livres, pudermos ter fé no homem, no seu destino ou no seu transcendente. Quando o abraço armilar nos voltar a aquecer.



Não, ainda vivemos nas guerras civis ideológicas, nas guerras frias culturais, nas guerrazinhas de homenzinhos, desses que são marcados pela vontade de poder, nesta anarquia mansa que, subterraneamente, nos amarfanha pelas longas teias da cobardia, gerando as sucessivas ditaduras do situacionismo e da incompetência.

Insurge-te contra este mais do mesmo, desobedece aos compadres e comadres desta partidocracia, não admitas que, no espaço público, em nomes das razões de Estado, se pratique aquilo que não admites em tua casa, na tua família, na tua rua, na tua terra. Volta a ser um homem livre, não tenhas medo!



Mas o tempo não está para filosofices ou politiqueirices, mas para sentir os pormenores da paisagem. Ter a liberdade de um pássaro peregrinando a paisagem, acariciar o chão de caruma e percorrer o espaço destas matas que nos restam.

Porque apetece continuar feliz e poder olhar os outros, olhos nos olhos, sem o calculismo dos que encenam aquelas parecenças que destroem as chamadas relações sociais. Apetece esta saudade de mar, as ondas pequenas do bom tempo, a limpeza das areias infinitas e os passeios na maré baixa, de falésia a falésia, diante de quem sou.



Que sejas sempre um homem livre, desses que cumprem o dever de bons filhos de seus pais honrados. Não temas alinhar com a contra-corrente e até com o contra-poder. Tem a coragem de ser minoria, não temas optar por aquela conduta que não está dependente do aleatório de uma escolha arbitral ou de um resultado eleitoral, onde domina a lógica do jogo de fortuna e de azar onde pode não ter razão quem vence. Pode ter razão quem perde. Há homens de sucesso que não sabem onde fica o seu próprio norte.

Prefere que os outros te reconheçam como daqueles vencidos da vida que nunca cederam a respectiva rebeldia em troca de um prato de lentilhas, oferecido pelos poderes estabelecidos. Prefere dar-te àqueles projectos que a maioria dos que dizem pensar segundo aquelas modas que passam de moda sempre consideraram coisas falhadas. Não te disperses em pequenas intenções plenas de servilismo de que o inferno das frustrações continua cheio. Não te percas nos corredores frequentados por essa sub-gente que se dilui pelos meandros das sub-instituições.

Não queiras servir ilusórios bobos de reizinhos sem reinos. Que escrevas o que pensas na altura certa, para poderes seguir livre o teu próprio sonho. Vale mais olhar o sol de frente, mesmo que se morra em combate ou que seja condenado por fuzilamento de ódios.

Eu, pelo menos, sem saber tudo o que quero, sei perfeitamente o que não quero e sei que tentarei não pisar terrenos armadilhados pelas minas da subserviência, por todas essas procuras de uma qualquer prebenda dada pela cunha ou pelas habituais manigâncias politiqueiras ou eclesiásticas, dessas alfurjas, lojecas e pequenas cortes de um mundo que já não há.

Deixa algumas sementes de beleza e muito amor por cumprir. Que, de ti, ninguém possa dizer que, um dia, se vendeu pela posta ou pela comenda. Sê livre!