a Sobre o tempo que passa: Recordando Eric Voegelin

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

16.11.05

Recordando Eric Voegelin



Eric Voegelin constitui, sem dúvida, uma das referências fundamentais do universo contemporâneo das ideias. Principalmente por ser um insigne representante da íntima ligação entre o pensamento europeu e o pensamento norte-americano do pós-guerra, à semelhança de outros gigantes, como Leo Strauss, Carl J. Friedrich e Hannah Arendt, que a euforia genocida das perseguições hitlerianas obrigou a uma travessia do Atlântico. Uma geração que manteve, nesse Novo Mundo, a arca dos segredos teóricos da liberdade europeia, daquilo que o mesmo Voegelin considerou como a ciência clássica e cristã do homem, onde o fundo ateniense, platónico e aristotélico, reanimado pelo estoicismo romano e pelo vigor espiritual judaico-cristão, produziu aquele humanismo activista que sempre ousou nascer de novo, refazendo as sucessivas renascenças e promovendo aquelas regenerações que sempre visaram regressar para seguir em frente .

Falamos evidentemente daquelas correntes contrárias à modernidade do cientismo, iluminista ou positivista, que alguns alcunham de conservadoras, e que o não deixam de ser, se as entendermos como conservadoras do que deve ser, isto é, dos princípios, mas que, contudo, se manifestam como irreverentemente inconformistas, quando não insolentes, face ao situacionismo mental da modernidade, que apenas pretende conservar o que está. Aliás, a comunidade instalada nas terras norte-americanas, fiel ao acto fundacional da respectiva res publica, sempre constituiu uma espécie de refúgio para todos os que, peregrinando pelas origens, conservam fidelidade ao princípio da continuidade histórica das instituições políticas, tendo até transformado a independência norte-americana naquela revolução evitada que permitiu o transporte do consensualismo anti-absolutista, tardo-medieval e renascentista, para os nossos dias.


Ao contrário de alguns dos mitos de certa concepção cientificista da modernidade, Voegelin propõe, tanto para o direito como para a politologia, um modelo neoclássico de ciência de princípios, isto é, o regresso à autêntica perspectiva teórica que nunca significou uma separação da praxis. Primeiro, porque não é possível que se atinja o nível da teoria sem que se parta de uma base empírica. Segundo, porque não há teoria sem experiência.

Tanto a base empírica como o modelo de experiência nada têm a ver com os postulados das regras do método da chamada modernidade, pós-cartesiana e positivista, correntes que, transformando aquilo que sempre deveria ser entendido como caminho (a noção etimológica de método) num fim, usurparam a perspectiva da razão, recobrindo, com os nomes de racionalismo e de cientismo, uma ideologia que nunca coincidiu com os autênticos conceitos de razão e de ciência. Isto é, inverteram a natureza das coisas, esquecendo-se dos fins pela absolutização dos meios e não lembrando que a verdadeira ciência sempre foi entendida como o consenso daqueles que pensam de forma racional e justa no sentido da superação da opinião pelo conhecimento.

Acontece que, segundo Voegelin, a verdadeira teoria, como explicação de certas experiências, só é inteligível para aqueles que, tendo atingido a maturidade ( spoudaios de Aristóteles), conseguem reproduzir imaginativamente as experiências que a teoria procura apreender, isto é, para aqueles onde se despertem experiências paralelas como base empírica que sirva para testar a base da teoria. Porque a razão, enquanto logos, não se reduz ao intelectualismo e ao voluntarismo, exigindo também imaginação. Porque o verdadeiro homem de razão, aquele que procura a recta ratio, não pode excluir o animal simbólico, essa zona fundacional do homem onde têm de harmonizar-se todas as potências da alma, da razão e da vontade à própria imaginação.

A modernidade transformou a teoria numa escrava do método, levando a que os meios passassem a ser superiores aos fins e gerando aquelas rupturas epistemológicas que conduziram aos extremos do materialismo e do idealismo, perspectivados como contrários. Como se a natureza das coisas em sentido clássico não exigisse uma espécie de transcendente situado, dado que no imanente está o transcendente, porque só por dentro das coisas é que as coisas realmente são. Esse desespero gnoseológico, que transformou a dialéctica numa luta de contrários, esquecendo a possibilidade de uma dialéctica de distintos, passível de circularidade e de harmonia. Esse exacerbado absolutismo que provocou o dualismo do bem e do mal, cada qual situado em lugares conflituantes, como se as coisas más não tivessem muitos pedaços de bem e as coisas boas, fragmentos de mal.

Marcado por outra postura, considera que as ideias não têm história, quase coincidindo com a perspectiva de Arnold Toynbee, para quem existiria uma contemporaneidade filosófica de todas as civilizações. Neste sentido, a sua aposta num regresso às origens platónicas, aristotélicas e tomistas do pensamento ocidental, nada tem de retroacção reaccionária contra a modernidade, significando, pelo contrário, um seguir em frente, de acordo com o sentido regenerador daquilo que Fernando Pessoa (1888-1935) metaforizou como o ter saudades de futuro. Nem sequer pode confundir-se com a recente moda da pós-modernidade onde alguns adeptos tardios do mesmo dogmatismo cientificista se mostram arrependidos sem, no entanto, recusarem o essencial da metodologia anterior.

Assim Voegelin defende que a racionalidade plena dos meios depende da racionalidade do fim, exigindo que a ciência do direito se integrasse numa ciência do bem maior, isto é, da felicidade. É que a modernidade, tal como explodiu nos contemporâneos séculos XIX e XX, mais não foi do que um secularismo, que ousou fechar a alma ao transcendente e desintegrar a própria filosofia, gerando-se o mito desenvolvimentista de progresso, filho das ideias de processo histórico, que negou a possibilidade de crescermos para cima e para dentro, como propunha Teilhard de Chardin. Uma ruptura que teria sido produzida quando o homem, ao decepar-se do Mundo e, consequentemente, de Deus, encheu de sombras e de vazio a sua interioridade, impedindo que ele acedesse à teoria, de acordo com aquele ensimesmamento de que falava Ortega y Gasset, e que não vivesse a experiência imaginativamente, esse camoniano vale mais experimentá-lo que julgá-lo, mas situado numa Ilha dos Amores, onde também se admite o julgue-o quem não puder experimentá-lo. Quando o homem deixou de entender o Mundo como sistema aberto a um transcendente, onde tanto pode estar Deus como o logos.

Importaria que a alma se abrisse ao transcendente que tanto pode ser o nous e o agathon de Aristóteles e Platão, respectivamente, como o tal logos dos estóicos e dos cristãos. De qualquer maneira, o direito e a sociedade reflectem as concepções do mundo e da vida dominantes. Em civilizações cosmológicas, a ordem aparece como um microcosmos, enquanto em civilizações antropológicas nos surge como um homem em ponto grande, um macro-anthropos. A ruptura deu-se quando, na sociedade ocidental, deixou de existir um equilíbrio entre a razão e a revelação, como fontes autorizadas de ordem, situação provocada pelo ambiente cultural anti-religioso e anti-filosófico. Uma ruptura que atingiu o seu clímax nos totalitarismos contemporâneos, por causa da ascensão de movimentos doutrinais gnósticos que tentaram a ordenação da sociedade pela fusão da autoridade normativa com a autoridade poder.

É nesta zona que Voegelin faz entrar o problema do direito, enquanto ordem normativa, do direito entendido como aquela representação da realidade que faz exigências à própria realidade. Essa ordem normativa, irmã das ordens normativas da religião, da política e da moral, e até da própria economia, quando esta procura a espontaneidade do kosmos, como notou Hayek. Essa ordem normativa que expressa tanto a tensão entre a ordem empírica, isto é, a ordem social existente, e uma outra ordem superior, a ordem substantiva, a ordem do ser ou a ordem verdadeira, para utilizarmos a terminologia voegeliniana.

E aqui, o nosso autor, retomando algo da Idade de Ouro de Platão, apela à ideia regulativa de uma espécie de ordem primordial, marcada pela harmonia entre o homem, o Mundo e Deus, um alfa que sempre continuaria a ser um ómega, esse tal mais além, de onde se vem, para onde se vai, e que nunca correspondeu a um facto histórico, a algo que se teria verificado no tempo e no espaço, como o defenderam certas teorias do contrato social.

Nessa ordem verdadeira, do antes e do depois, residiriam as verdadeiras regras, o objecto perfeito, a lex animata, o direito vivo, insusceptível de ser criado ex novo, ou ex nihilo, mas apenas passível de descoberta. Essa ordem verdadeira, equivalente à physis dos gregos, antes da ruptura dos sofistas, esse estado regulativo de um nomos basileus, próximo daqueles mores maiorum dos romanos, a que só os prudentes podiam aceder, tirando o véu, desvelando ou interpretando.


Nesta argumentação, retoma o sentido platónico e aristotélico da natureza das coisas. Assim, a ordem verdadeira de Voegelin é quase o mesmo que a politeia de Platão, a polis melhor ou a ordem perfeita, pouco diferindo da boa sociedade de Aristóteles ou do bem comum de São Tomás de Aquino. A verdadeira ordem é o melhor regime da polis, a ordem perfeita, a ordem justa, estando tão próxima da grande sociedade de Adam Smith quanto das regras de conduta justa de Hayek.

Voegelin assinala que o direito é parcela de um todo bem mais complexo e insiste na hierarquia: ordenamento jurídico, ordem da sociedade, ordem verdadeira. Não deixa mesmo de estabelecer hierarquias dentro de cada uma dessas ordens, salientando que a ordem empírica do direito tem como nível superior a ordem substantiva da sociedade. Assinala até que existe uma tensão entre a ordem substantiva da sociedade, tal como existe empiricamente, ou simples ordem empírica, e a verdadeira ordem substantiva.


Na Renascença, com a emergência do conceito bodiniano de soberania, ainda entendida como mera soberania externa, surge um príncipe que se assume como representante da comunidade política, em luta contra o papado e o império. Contudo, esta soberania ainda não é absolutista, nomeadamente no plano interno, dado que o soberano para efeitos inter-estaduais tem um campo de actuação delimitado: os soberanos têm de garantir uma substância de ordem que não é obra deles. Com efeito, a soberania ainda não é a competência da sua competência, ainda não necessita de auto-limitação e as leis do príncipe estão num plano hierarquicamente inferior aos estratos cimeiros do direito divino e do direito natural, bem como das próprias leis fundamentais. As leis editadas por tal soberano são superiores ao costume e às decisões dos magistrados.

Só a partir de Thomas Hobbes e do absolutismo surge a soberania interna, uma verdadeira soberania absoluta que se aplica a nível interno, unidimensionalizando as comunidades pelo rolo compressor da obediência. Surge assim um soberano onde tudo aquilo que ele diz tem valor de lei e que não está submetido a nenhuma ordem superior, nem mesmo à lei que ele próprio edita. E tudo se concebe em nome da segurança interna, a salus populi que ultrapassa o próprio desvario da maquiavélica razão de Estado e passa a conceber que a paz, num mundo de homens lobos dos homens, não passa de uma mecanicista ausência de guerra, gerada pela força das potências e dos Estados em movimento na balance of power..

Finalmente com o chamado secularismo e a desintegração da filosofia, nos séculos XIX e XX, principalmente a partir dos positivismos, é que se afasta da teoria jurídica a questão da ordem substantiva. Surgiria então uma distinção entre a jurisprudência normativa, defensora das regras válidas, e a jurisprudência sociológica, que põe o acento tónico no acto de criação de regras válidas. Se no primeiro campo se enquadra a teoria pura de Stammler e Kelsen, com a identificação entre o direito e o Estado, para afastar o direito da sociologia e da ideologia, já no segundo campo se inserem as várias tentativas de uma sociologia do direito e das subsequentes escolas sociologistas. E como observa Voegelin, em nenhum destes processos mentais há preocupação com a procura da ordem verdadeira, pelo que a natureza do direito como a ordem substantiva da sociedade não se tornará objecto de análise.