Um fim de semana mui azeiteiro...
Quando Manuel Alegre proclamava a sua comissão de honra de forma empolgante, marchávamos nós para o Ribatejo, a caminho da azeitona, entre Azóia e Tremês. E quase apetece seguir um texto de Bulhão Pato, datado de 1883, onde se descreve esse " aprazível e saudoso retiro" perto da "ribeira, que vai seguindo a desaguar no Tejo, bordada de salgueiros, de choupos e de faias, cadencia o murmúrio sonoro da sua corrente com o gorjeio de milhares de pássaros, que esvoaçam na ramagem tenra e viçosa, em chegando os dias da Primavera".
Eles não sabem o que é uma rega em noite de luar, nunca deram nome de gente aos animais de criação e nem sequer conhecem a alma das árvores ou o cheiro dos torrões da terra-mãe. À esquerda e à direita, há uma canalha pretensamente fina, pretensamente elitista, que sempre pensou estar do lado certo da história dos vencedores, entre a Senhora de Fátima, com touradas e cavalos de alta escola, e São Trotski, com requintadas roupas importadas, apenas esperando os aplausos de um povoléu que os vai saudar na estrada, pedindo brindes de campanha. Entre o reaccionário possidente e o revolucionário frustrado, venha o Diabo e escolha. Prefiro continuar a amanhar a terra das ideias.
Por aí, "a aldeia da Azóia, ao ocidente, ressai, com as suas casitas brancas, em pequeno anfiteatro, dentre o maciço denso da verdura dos vinhedos, dos cabeços de mato e dos enormes ramalhetes de freixos que destacam aqui e além com a sua folhagem alegre, do fundo carregado dos olivedos". Agora, há um belo pão em Tremês e um café, onde se enganam na meia de leite de máquina, mas oferecem um cartão que dá direito a uma bica, depois de consumirmos dez.
Mas os pequenos ditadores das pequenas instituições continuam a amarfanhar o sonho e muitas gentes sem semente vão poluindo o prazer da criação, eles que não sabem o estampido de um filho que nasce, de uma árvore que se semeia, ou de um livro que nos faça sofrer.
"A pouca distância do Vale de Lobos está outro, o Vale de Santarém, que Almeida Garrett imortalizou nas suas Viagens, e onde Rebelo da Silva tinha a casa, ensombrada dos loureiros e gorjeada dos mesmos rouxinóis que encantavam aquela Joaninha dos olhos verdes, a flor alpestre mais graciosa, colorida e perfumada de quantas têm desabrochado, com Abril, nos agros do campo!".
O rio, um pedaço de vento, a árvore em seu verde, a vida, um breve risco definindo meus limites e um tempo de silêncio, de segredo, este intervalo que vai circulando por mim dentro, além de mim. Como se o tempo me desse o espaço necessário de um abraço.
E recordando Herculano, também podemos dizer: "O olival era uma parte da lavoura com que se desvelava mais. No dispor os tanchões, decotar as árvores feitas, cortando os troncos velhos, que rebentavam novamente, e no método da colheita punha todo o cuidado. Depois seguia-se a fabricação, a frio e sem sal, obtendo os resultados que são conhecidos. Ele, que nunca pusera nem o hábito de Cristo, ufanava-se com o seu azeite haver ganho a medalha numa exposição estrangeira!". Por nós, foram setecentos quilos de azeitonas que se apanharam da árvore como quem vai mungindo uma vaquinha, as fogueiras que arderam a noite inteira, as televisões desligadas, as políticas postas em retiro e noites estreladas e mansas, onde se avistaram muitas estrelas cadentes e a longa estrada de Santiago que nos deram as eternas viagens na nossa terra.
A pátria que vou sofrendo continua a ser desterro, lugar de exílio, sítio de fim. Mas por mim, persisto aqui, talvez em vão, na procura de um qualquer recanto onde seja meu lugar onde. Da esquina de meu quintal de menino, quando quase tratava as minhas árvores por um nome próprio
Percebi, profundamente, ao executar o varejar e ao exercer a apanha, a crise da pátria. Cada oliveira deu, em média, trinta quilitos, isto é, três litros de ouro liquidificado, depois de um ano de sol e chuva e uma hora e tal de mão de obra, donde virá a margem do lagareiro e dos intermediários... Quem disse que a agricultura não era amor da terra, com árvores a quem damos nome de gente?
E, na memória destes montes da infância, volta a oliveira que, um dia, ardeu em dor, o muro cujas pedras desencontradas, em cruzada simetria, me deram desenhos de castelo medieval. E sempre a minha cidade ao fundo, à sombra da torre, as casas, as luzes, a gente, e os passeios ao domingo, em ritual de festa.
Agradeço aos companheiros de labuta. Ao patrão Augusto e à equipa de recolha que passou a noite entre o relento e o calor da fogueira: Ana, David, Francisco, Luiza, Mara, Jorge e Teresa, bem guardados pelo "Jet" e pela "Falua".
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