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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

31.10.05

Entre déspotas e viradeiras, na véspera do terramoto



Neste Portugal dos Pequeninos com a mania das grandezas, quando o mau tempo nos vai trazendo a boa chuva e os grandes do futebol empatam todos, nada como comover-nos com a homenagem prestada por um dos nossos melhores comunicadores televisivos, antigo ministro da educação nacional de Salazar e Caetano, ao máximo unificador comum da esquerda e da direita, esse déspota pretensamente iluminado chamado Sebastião José de Carvalho e Melo que, enquanto esteve no supremo poder se encheu de comendas feitas do concreto de milhares de prédios.



Quando o salazarismo e certa herança maçónica elevam o déspota a interruptor da avenida da liberdade, podemos concluir que o nosso ciclo político decadentista anda sempre entre déspotas e viradeiras, entre o desespero da personalização do poder que, em nome do abstracto Estado, procura comprimir o pluralismo, proclamando o fim dos corporativismos e dos dos privilégios, e a frustração restauracionista do "satu quo ante" das viradeiras. Acontece sempre uma infernal sucessão de revolucionarismo sem reforma e de reaccionarismo situacionista que procura repor o que estava, a que se dá o nome de conservadorismo, o exacto contrário daquele centro excêntrico de uma tradição capaz de sustentar a mudança.



Paradoxalmente, as várias esquerdas e as várias direitas tendem a elogiar a terapia sísmica do terramoto, com o laicismo maçónico a aliar-se ao salazarismo, na inauguração da estátua desse símbolo do usurpador. Por mim, que não quero ter que escolher entre o despotismo dito esclarecido e a viradeira dita obscurantista, apenas quero rejeitar estes falsos atavismos, cuijas variações tanto produziram o salazarismo, do despotismo reaccionário, como o revolucionarismo do despotismo vanguardista.



E assim continuamos amarfanhados entre a ameaça de personalização do poder e o falso progressismo caceteiro, ambos assentes naquele colectivismo moral que tende a instrumentalizar tal dialéctica, onde não faltam congreganismos e anticongreganismos de sinal contrário, sempre adversários do pluralismo e da autonomia dos políticos, infra e supra-estatal.



Nas candidaturas presidenciais que por aí se pavoneiam, muitos procuram ressuscitar, de forma subliminar esse simbólico do despótico iluminado, pelo que Sebastião José ameaça voltar a agitar o não adormecido fantasma dos nossos medos ancestrais. Podem repetir, como Martin Luther King, que "have a dream", mas falta a muitos a necessária ideia de um Portugal plural, incompatível com merceeiros de lápis atrás da orelha e bata cinzenta, prometendo betão e folhas quadriculadas da contabilidade bancária.