a Sobre o tempo que passa: maio 2006

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

31.5.06

Do homem lobo do homem ao homem rato do homem



De vez em quando, reparamos que, se não houver boa cultura e boa educação, a sociedade humana pode regredir, voltando ao nível de continuidade das sociedades animais. Porque, em ambas, existem animais agressivos, marcados por organizações hierárquicas e onde até se distinguem nitidamente os papéis reservados para o masculino e o feminino. Nas sociedades humanas, apenas podemos estabelecer medidas para limitarmos a agressividade, para canalizarmos os respectivos excessos, mas não para a eliminar. Aliás, a chamada democracia não passa de um simples sistema de institucionalização de conflitos e o direito daquele reconhecimento da circunstância de o homem ser um animal de regras, onde as regras só o são porque podem ser desrespeitadas.




Como ensinou Konrad Lorenz, o ser humano é um animal agressivo como todos os outros animais. Não vivemos apenas segundo a fórmula de Hobbes, do homem lobo do homem, mas também segundo o lorenziano acrescento do homem rato do homem, dado que, por vezes, o homem se assemelha ao dito, pois, ao contrário dos animais normais, como o lobo, o homem, tal como o rato, mata os rivais da mesma espécie, ao contrário dos restantes que apenas matam os de espécie diferente, procurando, para os tais da mesma espécie, apenas mantê-los à distância, quando se visa conquistar um simples território alimentar. Porque, em casa onde não há pão, todos ralham e todos têm apetite de rato...

Esta implosão mental que pode preceder a pior das guerra civis que é a guerra civil fria, ou o nosso sindroma de timor



Hoje, face a anunciada greve, parece que não haverá peixe fresco, tal como a temperatura vai voltar a descer, enquanto a aparente a calma regressa às ruas de Timor e poderão abrandar estas sucessivas pragas de aranhas, mosquitos e borboletas, face à explosão de momentos de Verão em dias e noites de plena Primavera. Por mim, lá continuo submetendo-me para sobreviver, com vontade de lutar para continuar a viver, nesta solidão sem tribo, onde, de vez em quando, lá me vou rendendo à beleza, à sensibilidade e à autenticidade com que se costumavam tecer as artes da poesia e que fui reencontrar, na tarde do dia 29, nas palavras vida do José Félix Duque, a quem deixo o meu testemunho de cumplicidade de quem, no pretérito, por aí sonhou poder semear.



Basta que nos livremos do sindicato das citações mútuas dos chamados literatos oficiosos e das respectivas seitas de controlo, que tão mal têm feito à cultura viva, como bem o podemos confirmar quando olhamos, numa casa dita de Fernando Pessoa, os efeitos do decretino de um presidente de câmara, aliado ao decretino de outros cretinos, transformando outros pretensos aristocretinos em praga de bustos e arabescos que nos toldam as paredes. Nunca mais lá porei os pés. A memória de Pessoa nunca devia ter caído na feudalização dos amigalhaços do culturalmente correcto, mas de vistas curtas! Basta lembrar-me de conversas que mantive com Reis Ventura sobre os tempos de vida do nosso Camões do século XX.



Não pensem, estimados leitores, que sofro do complexo da teoria da perseguição, que me considero vítima ou cordeiro sacrificado pelo actual situacionismo político ou cultural, até porque não sou candidato a qualquer lugar ou a qualquer renúncia. Já renunciei a tudo aquilo que este e anteriores poderes me ofereceram e tenho, nestes momento, suficientes amigos em lugares cimeiros que cederiam a uma qualquer cunha que lhes metesse, incluindo a de a receber, em troca favores que, outrora, lhes prestei. Apenas considero que o poder é cada vez mais incompatível com a autoridade e a parcela desta que conquistei por concurso público, filhos criados e obra experimentada será tanto mais alta quanto menor for o meu transacionismo com as teias deste sobe-e-desce da fama, ou das maiorias de conjuntura que levam alguns aos ministeriais poisos.



Também não me considero como dos poucos que se sentem homens livres, porque felizmente me sinto muitísisimo bem acompanhado, não precisando de fazer apelo àquela "consciência tranquila" dos que, tendo rasca na assadura, elaboram os tais discursos de justificação, típicos dos que sofrem um desaire ou um desastre que os leva ao pelourinho da opinião pública. Prefiro continuar a apelar ao bom senso.



Quem leu as opiniões que a senhora ministra da educação pré-universitária teve sobre certos professores e viu a reportagem da RTP de ontem sobre a matéria, pode concluir que atingimos um certo ponto sem retorno que nos pode atirar, não apenas para a continuidade desta decadência, mas, sobretudo, para aquele vazio institucional, onde, não havendo ideia de obra, desaparecem as manifestações de comunhão e de nada valem os autores e interpretadores de estatutos e regras heterónomas.




Da decadência, sempre podemos sair pela regeneração, produzida pela consciência de crise. Da falta de doutrinas, crenças, valores e princípios, apenas nos podemos iludir com politiqueirices neomaquiavélicas e tacticismos, onde abundam, como cogumelos daninhos, muitos hermeneutas de regras alienígenas, os tais que se vão vendendo em avenças, pareceres e consultas, e a quem chamamos juristas, ou passeando-se nos palcos e bastidores dos holofotes da chamada crítica literária ou artística, a tal dos que, impotentes na sua criatividade, vão ditando, para os outros, aquilo que não sabem fazer, mas que lêem e traduzem de coloridas revistas que, do estrangeiro ou da seita, nos trazem sinais de sítios onde o pensamento ainda têm pátria e onde as pátrias, mesmo que sejam da antipátria, ainda têm pensamento.


A pior das crises colectivas não é sermos extintos por uma invasão ou pela bancarrota, mas antes pela implosão mental, que, às vezes, precede a pior das guerras civis que é a guerra civil fria. Basta que os pretensos recriadores das instituições saiam de sua ausência feudalmente presente e, utilizando a técnica gerontocrática da conspiração entre avós e netos, nos decapitem com seus ódios ao presente e ao futuro. Basta que volte a entender-se a droga da revolução como "Prec", premiando todos os processos de traição intitucional, ou de execrável vindicta, através do discurso faccioso ou demagógico.



Compreendo a praga de aracnídeos que nos faz enredar no sindroma de Timor, reparo que, em vez de um Estado Falhado, temos uma comunidade falhada que, muitos dias sofro, em altas horas de um sono sem dormir, consumido pela revolta individual que me dá Norte. Onde a insónia não é a angústia da dúvida, mas apenas a constatação daquilo que tenho vindo a prever e a sentir difusamente nos sinais dos tempos.




Já não tenho idade para depressivas revoltas ou para ilusórios encantamentos com os falsos D. Sebastião. Prefiro o sinuoso silêncio ao remorso. Prefiro dizer incomodamente, à cobardia dos que se abstêm, que crises que fazem arder Timor não são causas, mas sintomas, meras consequências das mesmas causas que, também por cá, nos amarfanham e que, de um momento para o outro, poderão explodir em novas pragas de aranhas, mosquitos e borboletas, quando os ovos da podridão demonstrarem que os parasitas nos continuam a corroer por dentro e a ser condecoradores e condecorados de um qualquer 10 de Junho usurpado, sem roteiros de luta pela inclusão.




30.5.06

O filme do 30 de Maio de 1926, porque todas as revoluções são pós-revolucionárias....



Bernardino Machado indigita Cabeçadas a formar governo, às 11 horas da manhã do dia 30, domingo, depois de convite formulado por Ribeiro de Carvalho.

Às 7 horas da manhã, Ferreira do Amaral, comandante da PSP de Lisboa, toma posse como governador civil interino de Lisboa. Gomes da Costa vai depois dizer que a guarnição de Lisboa não podia bater-se. Aderiu. E Ferreira do Amaral, confessar então querer um governo republicano e uma Constituição. Sem isso, é impossível a paz.

Depois de Cabeçadas endereçar uma carta ao Presidente da República, onde propõe a constituição de um governo de carácter extra-partidário, constituído por republicanos que mereçam a confiança do país, Bernardino logo o nomeia Ministro da Marinha e presidente do Ministério, acumulando interinamente todas as outras pastas. Repete o que fizera Saldanha em 19 de Maio de 1870 e Pimenta de Castro, em 25 de Janeiro de 1915, mas assumindo também os poderes que, antes, cabiam ao rei e ao presidente da república.

Governo de Mendes Cabeçadas (18 dias). Bernardino Machado convida Cabeçadas a formar governo, às 11 horas da manhã de domingo, 30 de Maio. Depois de Cabeçadas endereçar uma carta ao Presidente da República, onde propõe a constituição de um governo de carácter extra-partidário, constituído por republicanos que mereçam a confiança do país, Bernardino logo o nomeia Ministro da Marinha e presidente do Ministério, acumulando interinamente todas as outras pastas. Repete o que fizera Saldanha em 19 de Maio de 1870 e Pimenta de Castro, em 25 de Janeiro de 1915, mas assumindo também os poderes que, antes, cabiam ao rei e ao presidente da república.

Em 30 de Maio de 1926: presidente assume todas as pastas. Nesse mesmo dia é instituído um triunvirato com Cabeçadas na presidência, marinha e justiça. Gomes da Costa na guerra, colónias e agricultura. Armando Humberto da Gama Ochoa (1877-1941) no interior, estrangeiros e instrução.

Em 3 de Junho de 1926: Cabeçadas na presidência e interior; António de Oliveira Salazar (1889-1970) nas finanças; Manuel Rodrigues (1889-1946) na justiça; Gomes da Costa na guerra e colónias; Jaime Maria da Graça Afreixo (1867-1942) na marinha; Carmona nos estrangeiros; Mendes dos Remédios na instrução.

O 1º governo da Ditadura, presidido por Mendes Cabeçadas, tem três fases. Na primeira, em 30 de Maio de 1926, há apenas um Presidente do Ministério.

Na segunda, a partir do dia 31, o mesmo assume todas as pastas e concentra a plenitude do poder executivo, face à renúncia de Bernardino Machado.

Na terceira, desde 2 de Junho, o ministério é repartido por um triunvirato. O mesmo Cabeçadas fica com a marinha e a justiça, Gomes da Costa na guerra, colónias e agricultura, Gama Ochoa no interior, estrangeiros e instrução.

Em 3 de Junho, nova repartição: Cabeçadas na presidência e interior. Oliveira Salazar nas finanças. Manuel Rodrigues na justiça. Gomes da Costa na guerra e colónias. Jaime Afreixo na marinha. Carmona nos estrangeiros. Mendes dos Remédios na instrução. Ezequiel de Campos na agricultura e no comércio.

Ao começo da tarde do dia 30 de Maio sai uma nota da presidência da república anuncia as circunstâncias e Cabeçadas presta compromisso de honra cerca das 20 horas desse dia.

Bernardino Machado, através do seu secretário, Bourbon e Meneses, conferencia no Palácio de Belém, com os majores Ribeiro de Carvalho e Francisco Aragão, tentando também contactar com Brito Camacho que, entretanto, já tinha retirado para Aljustrel.

Na noite do mesmo dia 30, alguns republicanos dirigem-se a casa de Álvaro de Castro, a quem solicitam a resistência. Este, já deitado, levanta-se, e, de pijama, declara: não há nada a fazer. Chega a hora deles. É inútil tudo.

Nessa noite, a população de Lisboa, manifesta-se a favor do novo poder estabelecido. Grita-se morra o partido democrático e clama-se contra o governo de António Maria da Silva. Vitoriam o exército liberal, a República e Gomes da Costa. Até se notam grupos operários que saúdam a chegada da ditadura militar.

Entretanto, Gomes da Costa dá ordem a todas as forças militares para avançarem sobre Lisboa.

Cabeçadas, no dia 31, instala a presidência do governo no ministério da guerra e aqui, cerca das 16 horas, toma posse das restantes pastas ministeriais.

Realiza-se, contudo, a última sessão da Câmara dos Deputados, presidida por Rodrigues Gaspar, a que apenas comparecem 37 deputados. Da mesma forma sucede com o Senado, presidido por Correia Barreto, com 24 senadores. Ambos ainda recebem continência dos soldados da guarda à entrada no Palácio das Cortes. Abrem a sessão, mas logo reconhecem a falta de quorum. Soltam-se ainda, nas duas sessões, uns tímidos vivas à República, com os parlamentares monárquicos calados, mas a cumprirem a sua missão, não faltando um protocolar discurso do senador monárquico João de Azevedo Coutinho que faz o elogio formal de Correia Barreto. Às 16 h e 15 m chega um esquadrão de cavalaria da GNR que encerra as portas do Congresso.

No mesmo dia, Cabeçadas recebe carta de Bernardino Machado, ao retirar-se para a sua residência particular na Cruz Quebrada, onde o Presidente da República renuncia ao cargo de Chefe de Estado, confiando o mesmo ao Ministério em conjunto. Considera que restaurada a ordem pública sem violentas colisões e entregue a constituição de um Ministério Nacional a V. Exª, em quem a República tanto confia, a minha missão está cumprida. Esta carta será publicada no Diário do Governo de 12 de Junho seguinte, para os devidos efeitos.

Cabeçadas lê o processo, considerando que, em conformidade com a Constituição passa a ter a plenitude do Poder Executivo.

Entretanto, chega a Lisboa, no rápido da noite, Pedro de Almeida, delegado de Gomes da Costa, bem como os dois emissários que Cabeçadas tinha enviado ao Norte, Bragança Pereira e José Romão. O comandante, que se encontra junto das tropas bivacadas na Amadora, recebe-os de madrugada, numa reunião alargada a João Maria Ferreira do Amaral e a Oliveira Gomes, comandante da Escola Prática de Infantaria, que chefia as forças estacionadas na Amadora.

No Entroncamento, às 22 horas, já Raúl Esteves e Passos e Sousa congregam cerca de 2 000 homens, postos à disposição de Gomes da Costa que, no Porto, telegrafa aos últimos, dizendo que o governo de Lisboa não merece confiança e atraiçoa o espírito do movimento do Exército... Vou iniciar a marcha sobre Lisboa rapidamente.

Carmona estaciona em Vendas Novas comandando as forças do exército do sul.

Também a 31, o major Ribeiro de Carvalho, ainda apela para que se repita o modelo da Regeneração de 1851, com uma política ampla e de generosa conciliação nacional, reconhecendo que o movimento pode ser útil. Salienta que a vitória da revolução é, antes de mais nada, um triunfo da opinião pública. Os revoltosos venceram porque ninguém estava disposto a sacrificar-se por um governo que não traduzia os votos da nação.

Cabeçadas segue para Coimbra no rápido do Porto, logo de manhã. Gomes da Costa, sai do Porto, a meio da tarde, no comboio Sud, juntamente com o capitão-tenente Armando Humberto da Gama Ochoa, com o mesmo destino (1 de Junho). Têm uma conferência de reconciliação, nessa cidade do Mondego, ao fim da tarde. Dela resulta a nomeação de um triunvirato provisório, com Cabeçadas e Gama Ochoa, até então representante de Gomes da Costa no Porto e seu homem de confiança. Cabeçadas regressa a Lisboa, no rápido da noite, acompanhado por Filomeno da Câmara Melo Cabral e Raúl Augusto Esteves.

Gomes da Costa, que segue no mesmo comboio, desce no Entroncamento. Entretanto, Pedro de Almeida é encarregado de contactar Mendes dos Remédios, Oliveira Salazar e Manuel Rodrigues, para os sondar no sentido de entrarem para o governo.

Cabeçadas chega a Lisboa já de madrugada (2 de Junho). Declara aos jornalistas a constituição de um triunvirato provisório, dado que o ministério definitivo seria formado, depois da chegada de Gomes da Costa a Lisboa, e para o qual seriam convidadas entidades de reconhecido mérito e provada honestidade.

Decreta, então, a distribuição das pastas ministeriais, atribuindo a Gomes da Costa as da guerra, colónias e agricultura, e a Gama Ochoa, as do interior, negócios estrangeiros e instrução (decreto publicados no Diário do Governo do dia 2, mas com a data do dia 1, com Mendes Cabeçadas a assumir-se como Chefe de Estado).

Noutro curioso decreto, em simultâneo, Cabeçadas demite-se a si mesmo: é um caso inédito na história da República: um chefe de Governo demitir-se a si próprio. Sucedera assim porque também é Chefe de Estado (Rocha Martins).

Gomes da Costa sai do Entroncamento e vai para Tancos, donde emite um telegrama a todas as unidades militares, onde declara discordar da atitude de Cabeçadas: comunico, para conhecimento de todos os oficiais, que não estou de acordo com a notícia dos jornais acerca da formação do Ministério, continuando à frente do movimento de carácter exclusivamente militar, para engrandecimento da Pátria e para bem da República e do Exército. Gomes da Costa, General.