a Sobre o tempo que passa: Primeiro, a aula. Só depois, o capítulo...

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

21.12.06

Primeiro, a aula. Só depois, o capítulo...



Li as referências noticiosas sobre discurso de boas intenções do Senhor Primeiro Ministro quanto ao ensino superior. Acredito na determinação governamental quanto à anunciada terapia de choque. Nunca acreditei no modelo, até agora dominante, dos que querem conservar o que está, até porque nunca demonstraram querer conservar o que deve ser. Assistirei, com todo o zelo de homem livre, ao desenrolar de um processo onde a minha cidadania académica não foi, nem será, chamada a participar, mas a que responderei com lealdade aos valores e nas funções de professor catedrático e senador da minha universidade.

Sugiro apenas que não queiram descobrir o que já está descoberto nem inventar o que já está inventado: a ideia de universidade e os modelos de sucesso. Já agora acrescentem-lhe a experimentação de séculos de serviço público em Portugal, nacionalizando as excelentes ideias importadas pelos relatórios da OCDE e de outras agências globalizadoras, sem as traduzirem em calão. Os oligarcas da universidade a que chegámos preferiram a ditadura do "statu quo", outros começam a pensar no leilão e, enquanto o pau vai e vem, haverá sempre alguns primitivos actuais que aproveitarão para rapar os últimos restos do tacho, pintando-se de falsos dom-sebastiões, quando não passam de tigres de papel, repetindo o herético "dominus vobisque" de outras eras.



A história há-de registar em notas-pé-de-página este livro de estilo charlatão, onde todos vão ralhar porque falta o pão orçamental, o posto de vencimento e o diabo a quatro. Alguns até serão ousados e tentarão transformar as respectivas instituições em subdelegações das delegações asiáticas de certas potências universitárias do primeiro mundo, à espera dos futuros despedimentos da deslocalização globalizadora. Outros, percebendo que são fortes grupos de pressão corporativos, continuarão a assobiar para o lado, porque se consideram, e são, "praeter decretum", dos decretinos ocupantes do aparelho de Estado. Os restantes, perante tanta geometria variável, correrão para o acaso da encomendação feudal.



Por mim, sorrio, embora saiba que sofrerei no lombo a chicotada que deveria caber aos pecadores. Mas continuarei seguindo o lema de Hernâni Cidade: "primeiro, a aula, só depois o capítulo". O ensino superior continua à procura do bom senso, mesmo que ele seja Gago, mas não Coutinho. Falta-lhe um corrector de rumos colectivo a que na navegação se chamou sextante.