1 de Fevereiro de 1908. Nunca há actos de violência menos violentos do que os estados de violência
A mansidão, a meiguice portuguesa só se encontram à superfície; raspai-a e logo havereis de encontrar uma violência plebeia que chegará a assustar-nos (Miguel de Unamuno). Que o digam D. Carlos e D. Luís Filipe (1908), Sidónio Pais (1918), António Granjo, Machado Santos, Carlos da Maia (1921), Humberto Delgado (1965) e eventualmente as vítimas de Camarate. Não arquivemos os casos no tombo da teorias das conspiração. Porque em quase todos sabemos quem matou, continuando por saber quem mandou matar. Aliás, nem a própria morte de D. João VI está esclarecida. E, entre os assassinados políticos, metade são católicos e outra metade são maçons. E depois dos magnicídios, os momentos políticos que se lhe seguiram, todos ficaram a sangrar. Não nos desculpemos com o cozinheiro que era absolutista ou com o médico que era maçon. O arsénio já foi cientificamente comprovado. Vejamos alguns dados da cronologia dos começos do ano de 1908.
Na habitual recepção de gala no Paço, não comparecem os marechais regeneradores e progressistas (1 de Janeiro de 1908). O rei, em Vila Viçosa, caça; o João Franco, em Carnide, dorme com a casa cercada de polícia. Fala-se em conspirações, na tropa, em transferências de oficiais e sargentos. Chegam alguns a dizer: venha tudo, venha o pior, venha o diabo do Inferno que nos livre disto (Raul Brandão). Reunião dos marechais progressistas, tendo em vista a escolha das listas de deputados (dia 6). Reunião dos marechais regeneradores (dia 11). Aquilino Ribeiro consegue evadir-se da cadeia do caminho Novo, onde se encontrava detido, condenado ao presídio de Timor (dia 12).
Começa a circular o livro de António de Albuquerque, O Marquês da Bacalhoa, com insinuações reles sobre a Rainha D. Amélia (15 de Janeiro). O autor, de família miguelista, perseguida pelos pedristas, terá aderido aos republicanos como vingança, segundo a técnica dos extremos que se tocam.
D. Carlos visita Évora. Várias prisões de jornalistas, acusados de conspiração, nomeadamente de França Borges e João Chagas. Suspenso um jornal progressista na Guarda (21). Prisão de António José de Almeida (26). Consta publicamente que a revolução vai estalar dentro de dois dias. Um polícia aliciado pelo João Chagas, denunciou a revolução; o juiz, ao ler o depoimento do António José de Almeida, exclamou: - Ora até que enfim encontro um homem! (Raul Brandão).
Partido Republicano emite um manifesto, redigido por Bernardino Machado, onde, reconhecendo o ambiente de sobre-excitação, apela contra a ditadura, em nome da alma livre e heróica do povo português (dia 27). A atmosfera é eléctrica...toda a gente espera acontecimentos. O boato corre de ouvido em ouvido...Há nervos na atmosfera. A questão dos adiantamentos levantou todo o País contra o rei. Há muito que D. Carlos é visado, discutido e injuriado. Atribuem-lhe todos os males...E, no entanto, a vida segue o seu curso habitual: todas as noites enchentes nas revistas...Todas as noites o mesmo falatório no Rossio, o mesmo formigueiro humano seguindo as suas manias, as suas ambições, os seus interesses
Jugulada conspiração que se conjugara entre dissidentes progressistas e republicanos. São presos vários líderes da revolta como Luz de Almeida, Afonso Costa, Egas Moniz, Pinto dos Santos, Ribeira Brava e João Chagas, nas dependências do ascensor do largo da Biblioteca.
A Carbonária mobiliza cerca de oito mil membros em Lisboa e dois mil na Outra Banda, tendo entrado em contacto directo com o PRP a partir do Outono de 1907 (28 de Janeiro). Luz Almeida é particularmente eficaz quanto à organização dos bombistas, a chamada artilharia civil; António José de Almeida tem entendimentos com o exército e até com os anarquistas.
Decretada a prisão de José de Alpoim e João Pinto dos Santos. Suspensos cinco jornalistas, mas apenas um é republicano (29 de Janeiro de 1908). Alpoim e o visconde de Pedralva (Francisco Coelho Amaral Reis), depois de se refugiarem em casa de Teixeira de Sousa, fogem. Alpoim vai para Espanha, instalando-se em Salamanca. A revolta é jugulada graças à acção do general Malaquias de Lemos. Chega a haver desordens no Largo do Rato.
Os jornais franquistas Diário Ilustrado e Jornal da Noite dão conta dos acontecimentos, referindo que João Franco degolara um novo 31 de Janeiro. O ministro Teixeira de Abreu parte para Vila Viçosa, onde tem um encontro com D. Carlos. Regressará a Lisboa na madrugada do dia 1, antes do rei, para que o rei pudesse assinar um decreto com medidas excepcionais de luta contra a subversão, onde se previa, nomeadamente a expulsão do reino e a deportação para o Ultramar de quem atentasse contra a segurança do Estado..
Está uma tarde linda, azul, morna, diáfana... O rei e a rainha detiveram-se uns minutos, com o João Franco e o Vasconcelos Porto, que queria mandar vir um esquadrão de cavalaria para acompanhar o rei. D. Carlos opôs-se. O carro descoberto partiu a chouto, com toda a família real junta... (Raúl Brandão).
D. Carlos e D. Luís Filipe são assassinados numa esquina do Terreiro do Paço, depois de desembarcarem no cais das Colunas, vindos de Vila Viçosa, donde saem às 11 horas do dia 1 de Fevereiro. Os executantes são Manuel Buíça e Alfredo Costa. D. Maria Pia acusará João Franco de ser o coveiro da monarquia. Júlio de Vilhena logo declara querer um armistício na luta política dos partidos. Os tiros no rei e no príncipe real matam o próprio sistema político e anunciam o fim da monarquia. O jogo rotativista conduzira à tragédia. O salto em frente de João Franco acelerara o processo. Começa em tragédia o breve reinado de D. Manuel II. Entre os pistoleiros que premiram o gatilho e o ente, individual ou colectivo, que mandou matar ficará para sempre a distância do sigilo e eventuais razões se seita, partido, Estado ou potência. Sempre aquela lógica terrorista que proclama haver actos de violência que são menos violência que certos estados de violência.
O monárquico Carlos Malheiro Dias, na revista Ilustração Portuguesa, considera que quem criou a revolução foi, de facto, o Governo. O problema político era puramente administrativo. O governo, imprudentemente, transformou-o numa questão de princípios. Uma ditadura à Mouzinho da Silveira podia tê-lo resolvido. O Governo fez uma ditadura à Costa Cabral. Tendo por si a força, não lhe seria desairoso contemporizar. Em vez de acalmar as paixões, excitou-as...
Se os republicanos dispararam as espingardas, quem as carregou até à boca foram os rotativos (José Agostinho). Como vai reconhecer, depois, Machado Santos, tal acto foi levado à prática por estes homens, por um acto de abnegação espontânea. Se soubesse, a tempo, o que os dois haviam feito, tê-los-ia secundado à frente do corpo de marinheiros, mas só o soube quando todas as precauções se haviam tomado no quartel (artigo de 21 de Janeiro de 1911, publicado no Intransigente).
Nesse domingo, Lisboa tornou-se num túmulo e num deserto, a monarquia sangrentamente ferida e a república sinistramente desacreditada (José Agostinho). Raúl Brandão observa: se seis tambores fossem rufar para diante do Paço, a monarquia acabava ali mesmo. Como observa Lopes d’Oliveira, estaladas as raízes levarão ainda algum tempo a apodrecer no sangue e na lama... a Monarquia, se vive, é como prisioneira da República.
O regicídio é, seguramente, um acto condenável, mas o despotismo não o é menos. O tiranicídio é, na verdade, um crime; mas a tirania é também um crime (Sampaio Bruno).
Por tudo isto, tanto não vou à missa em memória do neto e do bisneto de D. Maria II, como não homenagearei os buíças. Viva o rei liberal! Matámos o rei, Salazar enterrou-o, supendemos a liberdade, para depois a restaurar. Conservemos a liberdade. Eu voltaria a desembarcar no Mindelo para identificar o reino com a república e cercar o trono com instituições republicanas (Passos Manuel).
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