A política, a religião, a moral e o direito são ordens complexas e autónomas, com amplas zonas de coincidência, conflito e indiferença
Lá se foi o dez de Junho, nesta encruzilhada de crescente desencanto e de regresso ao quente das guerras civis frias, sobretudo entre a política e a religião, como no anterior postal denunciei, nessas pouco correctas revoltas contra a hipocrisia instalada do sindicato da citações mútuas, incluindo as blogueiras.
Por hoje, recordo, como símbolo destas águas pantanosas, o oficioso friso que emoldurava as cerimónias do feriado, entre o desfile militar e a procissão das condecorações às comissões de honra dos candidatos vencedores. Duvido que grande parte de tal estadão do aparato lusitano, para telejornal filmar, tenha obsessão lírica ou épica para se exaltar em verso, mesmo quando se plagia uma ideia pouco alegrina de um velho professor alentejano, sem dar o seu ao seu inspirador. Quase todos eles são a consequência do nosso silogismo bem pensante e politicamente correcto e, pior do que isso, sintoma, e não causa, de um crepúsculo, onde tarda que às aves da sabedoria deixem levantar voo.
Todos batem palmas a discursos neutralmente escritos segundo o livro de estilo e o manual de procedimentos do candidato a deputado ou a ministro, depois de um estágio como assessor do chefe de departamento de um qualquer ministério da reforma e modernização da administração central do Estado. Esse ritmo situacionista dos seminários do regime que ensinam a fazer desfile para o rancho. Eles e os seus condecorados são o normal anormal da raça dos mandadores que pensam que o poder é coisa que se conquiste e não uma relação entre o aparelho de poder e a comunidade. Por isso é que as bandas e charangas do nosso vivório e foguetório são obrigadas aos acordes da Maria da Fonte, quando uma qualquer excelência ministerial visita a província, esse resto que não é paisagem, ou deserto, mas pátria, deserdada e desterrada.
E nestes teatros de corte se vai gastando, pelo mau uso, a ideia de Estado e prostituindo, pelo abuso, o apelo à religião secular da nação, com que procurámos laicizar certo transcendente. Se a maior parte das ideias e valores cívicos são conceitos e valores religiosos secularizados (Schmitt, que era alemão, católico e ex-nazi, dixit), a laicização desse transcendente não decepa outras procuras do mais além, que não é monopólio das religiões e, muito menos, dos aparelhos que comandam as organizações religiosas, mesmo quando abusam da posição dominante, nem que seja pela omissão, ou pela inércia. Especialmente quando estabelecem que a agenda da propaganda fidei deve difundir o preconceito que ostraciza o não-legionário, colocando-o no bando dos milenaristas, ateus, agnósticos ou gnósticos, como se não houvesse o direito de heresia, na procura do caminho e da verdade, fora do obediencialismo dos dilectos filhos das organizações religiosas que se assumem providencialmente como monarquias de direito divino.
A política, a religião, a moral e o direito são ordens complexas e autónomas, com amplas zonas de coincidência, conflito e indiferença. Especialmente quando cada uma delas assume uma espécie de ciência arquitectónica, considerando as outras parceiras como suas servas, hierarquicamente dependentes do index e do nihil obstat. E todas as degenerescências fundamentalistas produziram os irmãos-inimigos, das teocracias, cesaropapismos, laicismos jacobinos, puritanismos ou justicialismos, os tradicionais vícios de quem não admite a autonomia de tais ordens complexas, especialmente quando comprimem a ciência dos actos do homem como indivisus e pessoa e estragam a fuga ao animalesco pelas racionalidades da casa, com a sua economia, da praça pública, com a sua política, e os plurais templos dos homens de boa vontade.
<< Home