Recordações de democracia para os democratas que ainda têm a humildade de aprender lições de democracia
Assisti ao debate parlamentar sobre os sucessivos sinais de deriva pouco democrática, onde toda a oposição se uniu contra um PS que apenas declarou não receber lições de democracia de ninguém, como aqui previ com as letras todas. O discurso do PS foi proferido por Alberto Martins que nunca foi histórico de um partido a que aderiu, tarde, embora a boas horas. O do PSD por Zita Seabra, também chegada ao partido de Sá Carneiro ainda mais tarde e também a boas horas. O melhor discurso foi o da coragem de Manuel Alegre, o eterno poeta dissidente que, mais uma vez, praticou a liberdade de que continua a ser a voz, mais autêntica do que a dos ventríloquos e porta-vozes dos sistemas que perderam o sonho e a ideia de obra.
Valia a pena que o PS estudasse, com toda a humildade, algumas lições de democracia sobre o spoil system, o sistema dos troféus, correspondente ao sistema norte-americano de nomeação de novas equipas, depois da eleição de um presidente, um modelo instituído por Andrew Jackson no primeiro quartel do século XIX.
Max Weber definia-o como a atribuição de todos os postos da administração federal ao séquito do candidato presidencial vitorioso, salientando que, a partir de então, surgiu um novo esquema de partido, entendido como simples organização de caçadores de cargos, sem convicção alguma.
Com António Guterres, o spoil system passou a ser traduzido em português por jobs for the boys, antes de Durão Barroso o volver em boys for the jobs. E terá sido com base nesta experiência que Bailey considerou a política como um jogo onde os competidores actuam numa arena visando a conquista de troféus.
O que levou ao aparecimento, no modelo norte-americano, do boss, do empresário político capitalista que procura votos em benefício próprio, sem ter uma doutrina e sem professar qualquer espécie de princípios. Um político profissional típico que trata de atacar os outsiders que lhe podem ameaçar os futuros rendimentos, isto é o futuro poder.
A degenerescência em causa pode tornar-se numa rotina, a que até podemos dar o belo nome de flexissegurança, constituindo mais uma das novidades reformistas do socratismo, nascida dos nortenhos pioneirismos da DREN-Margarida Moreira e das reformas à moda do Minho do deputado Gonçalves, para não falarmos de outras voltas em Alcobaça, contra o blogue de Balbino Caldeira, com as consequentes caixas de esgoto daquela espiral de teorias policiescas da conspiração e dos seus irmãos-inimigos da perspectiva da cabala anti-situacionista. Veremos quem será depedido no final de um jogo que até pode ir de vitória em vitória até a uma derrota final que poderá ser mais encurtada no tempo.
Sou obrigado a recordar ao senhor deputado Alberto Martins parcelas de uma carta aberta que, para ele emiti, no começo do guterrismo: que "só pode haver uma democracia autêntica quando nela existir uma parcela de direita em dialéctica com uma parcela de esquerda, a tal base indispensável para o pluralismo que permite a alternância e garante o necessário controlo do poder.
Aliás, a existência de uma direita e de uma esquerda, enquanto posições relativas a um certo tempo e a um certo espaço, só são possíveis numa democracia pluralista e numa sociedade aberta, dado que, nas degenerescências da usurpação, do despotismo, da tirania, da ditadura e do totalitarismo, os usurpadores, os déspotas, os tiranos, os ditadores e os agentes do totalitarismo, venham de anteriores posições de direita ou de esquerda, assumem-se, precisamente, contra a existência das parcelas, das partes, das faccções ou do partidos, proclamando, quase sempre, que, depois deles, deixou de existir a direita e a esquerda. Todas as degenerescências antidemocráticas tendem, com efeito para a monocracia, vício que também costuma marcar os vanguardismos e os cesarimos, sempre satisfeitos com as votações dos 98% e dos 99% que, na maior parte dos casos, não são votações mas rituais litúrgicos de consagração do monolitismo.
Entre nós, o Doutor Salazar, que não veio da esquerda, que não era democrata, que proibiu os partidos e que nos governou, primeiro, em ditadura e, depois, em autoritarismo, pode ter sido genial, mas seria anacrónico considerarmos que a direita e a esquerda das nossas presentes circunstâncias estão condenadas a ser, respectivamente, salazaristas ou antisalazaristas.
O totalitarismo nazi era tão nacionalista quanto o jacobinismo esquerdista da Revolução Francesa e tão socialista quanto todos os socialismos. O totalitarismo fascista de Mussolini foi gerado por um antigo militante socialista, marcado pela memória messiânica do republicanismo maçónico de Mazzini. O totalitarismo comunista de Estaline e de Mao, esses sim, vieram mesmo da esquerda. Todos, contudo, se irmanaram na abolição da esquerda e da direita, proibindo, prendendo e assassinando os opositores. Entre todos eles, venha o diabo e escolha!
Perguntar a um direitista se ele denunciou o autoritarismo salazarista é tão insignificante quanto perguntar a um actual deputado socialista se ele denunciou, na altura certa, o estalinismo, o maoísmo ou o sovietismo vigente até 1989. O Dr. Mário Soares, que chegou a ter juvenis apoios ao estalinismo, foi um dos nossos melhores professores de democracia. Da mesma forma, só um vesgo de espírito pode negar a envergadura libertacionista de Sá Carneiro, apenas porque este foi deputado independente nas listas do partido único do regime da Constituição de 1933.
Contra o nazismo e o fascismo, ergueram-se muitos esquerdistas, mas seria injusto esquecermos que alguns dos mais eficazes opositores a essa barbárie quase demoníaca vieram da direita conservadora, à maneira de um tal Winston Churchill ou de um tal Charles de Gaulle, tal como eram da direita, e conservadores, os principais membros da resistência alemã a Adolfo Hitler, com destaque para o chamado círculo de Kreisau. Da mesma forma, houve muitos socialistas e homens de esquerda que tiveram a triste sina do colaboracionismo com o nazi-fascismo, como foi flagrante na França de Vichy, com Laval e outros mais que, depois, hão-se ser heróis da esquerda mais recente.
Aliás, em Portugal, talvez importe recordar que o líder do 28 de Maio, Gomes da Costa, era um antigo militante do partido radical e que alguns dos históricos opositores ao salazarismo eram tão direitistas quanto Paiva Couceiro e tão católicos quanto Lino Neto, para não falarmos das origens retintamente fascistas de Humberto Delgado e da marca direitistas de alguns dos mais distintos apoiantes da respectiva candidatura, onde passsaram monárquicos como Rolão Preto, Vieira de Almeida ou Luís de Almeida Braga, um pouco à imagem e semelhança daqueles miguelistas que se irmanaram com os setembristas na Maria da Fonte e na Patuleia, contra a degenerescência cabralista.
Ninguém pode esquecer a presença direitista nas revoltas da Mealhada e da Sé, e, nas próprias origens conspirativas do 25 de Abril, há uma ampla coalisão, onde não faltam oficiais monárquicos, conservadores e direitistas, reflectindo as razões que levaram os próprios Congressos Republicanos de Aveiro a terem passado a Congressos da Oposição Democrática, num movimento onde homens como Francisco Sousa Tavares, Gonçalo Ribeiro Telles ou Henrique Barrilaro Ruas, não podem ser esquecidos.
O mais importante talvez não esteja nestas viagens retroactivas pelo Ancien Régime, mas antes na circunstância da reconstrução pós-revolucionária da democracia, desencadeada a partir do 25 de Novembro de 1975, ter sido obra tanto da esquerda como da direita. Se a partir de então retomámos as senda da democracia prometida em Abril de 1974, tal só foi possível porque a força de Ramalho Eanes, Jaime Neves e Melo Antunes foi mais forte que o vanguardismo da esquerda revolucionária, dos comunistas e dos otelistas político-militares, permitindo o respeito pelo voto livre de 25 de Abril de 1975 e pelos anseios manifestados pelos manifestantes da Alameda e das muitas outras alamedas dos católicos que, a partir de Aveiro e de Braga, geraram a primeira revolução de veludo da chamada terceira vaga da democracia, conforme Samuel P. Huntington, onde Mário Soares não foi Keresnki e Ramalho Eanes se assumiu como o anti-Totski e o anti-Lenine.
Como membro da tribo político-cultural de direita, como antigo militante e dirigente de um dos partidos nucleares do arco constitucional do actual regime democrático, gostaria de declarar a Vª Exª que esta democracia é também obra da minha tribo, desses sociais-democratas não marxistas, desses democratas-cristãos, desses liberais, desses conservadores e desses direitistas, entre os quais estão alguns honrados membros do actual governo, que, em Abril de 1975, votaram contra os comunistas e o esquerdismo vanguardista do PREC, que apoiaram Ramalho Eanes e que fundaram a AD, com o PSD, o CDS, o PPM e os antigos socialistas do grupo dos reformadores, onde, ao que parece, circulavam nomes como Medeiros Ferreira, António Barreto e Francisco Sousa Tavares, não esquecendo a adesão ao sá-carneirismo da poetista Natália Correia.
Isto é, muita gente da tribo político-cultural da direita chegou bem mais depressa à democracia prática que muitos proclamados democratas da democracia vanguardista que pensam que o antifascismo de há mais de vinte e cinco anos tem de ser superior à livre manifestação da vontade popular através do efectivo sufrágio universal, como o temos praticado desde 25 de Abril de 1975.
A democracia vive-se e pratica-se. Aprende-se, fazendo-a, sujando as mãos nos compromissos com as circunstâncias do Estado de Direito. Os que apoiaram as figuras simbólicas de Sá Carneiro, Amaro da Costa e Francisco Sousa Tavares, para falar apenas nos ausentes sempre presentes do regime que temos, não precisam de pedir certificados de democrata a outros democratas com outras histórias, que talvez não tenham votado PS, PPD, CDS ou PPM em 25 de Abril de 1975, nem Eanes nas primeiras presidenciais. O democratas da democracia pluralista não precisam de pedir certificados de democrata a certos antifascistas de antanho que, depois da democracia restaurada, tentaram impor um novo totalitarismo, prendendo e matando os que não tinham o perfil dos manuais terroristas do antifascismo, para não falarmos nos grandes latrocínios da chamada Reforma Agrária e das nacionalizações decretadas nas noites posteriores ao 11 de Março, quando algumas vozes do vanguardismo chegaram a propor a restauração da pena de morte que, em 1852 e 1867, foi abolida pela direita liberal, conservadora e monárquica da regeneração. Um assassino que seja antifascista ou anticomunista não deixa de ser assassino. Um ladrão que se diga democrata, não deixa de ser um ladrão.
Um antigo apoiante do salazarismo pode ser, hoje, tão democrata quanto um antigo apoiante do estalinismo ou do maoísmo. Já tivemos antigos ministros do Estado Novo como ministros e deputados do partido de Vª Exª, bem como antigos marxistas-leninistas, incluindo estalinistas e maoístas, em governos de direita, e ainda bem!
Aqui ao lado, em Espanha, foi o rei imposto por Franco que salvou a actual democracia espanhola e ninguém, por lá, duvida do fundacionismo democrático de antigos falangistas, como Dionisio Ridruejo, de antigos direitistas da CEDA ou do homem do aparelho franquista Adolfo Suárez. Ninguém em França duvida do socialismo de Miterrand, apesar do seu passado colaboracionista com Vichy ou dos seus juvenis elogios a Salazar. Os certificados de democrata medem-se pelos serviços prestados à democracia. Confundir defensores da democracia com simples antifascistas, pode ser confundir o trigo da seara democrática com muito joio de má memória. Basta recordar que muitas das vítimas do terrorismo antifascista são precisamente antifascistas e esquerdistas. Os mais recentes alvos humanos do terrorismo da ETA eram destacados socialistas e não empedernidos franquistas. Os primeiros ataques do PREC contra a liberdade em Portugal tiveram como alvo o jornal símbolo do antifascismo lusitano, A República, órgão do socialismo e da maçonaria, quando o novo antifascismo chamava fascista a Mário Soares.
O actual regime político português, que Vª Exª serve, se deve a Mário Soares o facto deste não ter repetido os vícios dos republicanos de antes do 28 de Maio, muito também deve à circunstância de Sá Carneiro e da Aliança Democrática, depois de Eanes e do 25 de Novembro, terem dado à democracia que vamos vivendo o apoio sociológico daquela direita que, felizmente, constitui cerca de metade do país. Sem esse apoio eleitoral nunca Vª Exª poderia ter sido deputado do PS. Sem essa resistência anticomunista nunca os ex-comunistas da Plataforma de Esquerda poderiam ascender a membros do actual governo e da actual bancada parlamentar da nova maioria, aceitando-se uma reconversão que, na maioria dos casos, aconteceu depois de Gorbatchov e da queda do muro de Berlim.
Quando pessoas como o senhor deputado Alberto Martins ingressam na classe política democrática, depois de muitas memórias, como o Maio de 68, algum vanguardismo neo-iluminista e certas ilusões otelistas, a democracia fica mais forte e mesmo os adversários da outra tribo agradecem poder praticar-se aquela essência da democracia que é o diálogo com o adversário, como assinalava Ortega y Gasset.
Gostaria que a tribo político-cultural da direita e a tribo político-cultural da esquerda caminhassem cada vez mais para o centro, isto é, que se opusessem entre si, mas firmando os lugares-comuns daqueles valores essenciais das coisas que todos devemos amar e sem as quais não é possível uma comunidade política, que é sempre uma comunidade de significações partilhadas. Toda a dissolução dessas coisas que se amam, como a pátria, a liberdade e a democracia, dessas ideias pelas quais vale a pena morrer, contribui para que a coisa pública se depublicize e se corrompa. E quando falha a res publica, falha a communio e falha o consensus juris. Isto é, não há democracia sem comunidade nem Estado de Direito, onde os nomes da igualdade e da justiça coincidem".
Etiquetas: alberto martins, bailey, democracia, jobs for the boys, socratismo, spoil system, weber
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