a Sobre o tempo que passa: Nesta republiqueta de notáveis e compadres, entre a parecerística e a subsidiocracia

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

16.8.07

Nesta republiqueta de notáveis e compadres, entre a parecerística e a subsidiocracia


Nos velhos tempos do PREC e dos começos da pós-revolução, quando a esquerda revolucionária proclamava em todas as paredes os ricos que paguem a crise, muitos entravam na moderação com outra ideia: para acabarmos com a pobreza não temos que acabar com os ricos, temos que ter um sistema fiscal mais justo. Passaram-se décadas, aderimos à CEE, integrámo-nos na UE, fomos sempre governados e presidencializados por partidos que, além de socialistas democráticos e sociais-democratas, sufragavam a referida ideia. Contudo, na prática, a teoria de um Estado Social com imposto progressivo acabou por ser aquela que agora é confirmada pelas estatísticas europeias: os ricos são cada vez menos e cada vez mais ricos; os empobrecidos são cada vez mais e cada vez mais empobrecidos.


Julgo que chegou a altura de deixarmos de comer gato por lebre. O nobre povo português deve poder passar a comprender quem manipula, provoca e estimula certa institucionalização artificial de conflitos. Deve poder compreender que vive numa republiqueta de notáveis e compadres, entre a parecerística e a subsidiocracia, que gerou uma complexa rede de feudalização de interesses e de compra de poder, onde os donos do sistema vão manipulando serventuários, condecorando intelectuários e prebendando os devoristas.


Deve poder compreender porque pertence ao grupo das espécies em vias de extinção o antigo, mas não antiquado, conceito de servidor público, esse que se deve assumir como homem de uma só fé, de um só rosto, de um só parecer, que homem da Corte não pode ser.


Feliz, ou infelizmente, o situacionismo sabe que a moral pública se perdeu porque deixou de haver medo do papão que guardava a vinha da burocracia, fosse o medo do papão da subversão comunista que punha os patrões em sentido, fosse o medo do 28 de Maio que a todos nos mobilizava para a abstracta liberdade.


Verificamos agora que o neocorporativismo tem amplas zonas de silêncios cúmplices e de vazio informativo, onde o poder infra-estrutural dos novos donos do poder estabeleceu uma injusta hierarquia social. Ela nada tem a ver com a velha teoria da conspiração, mas antes com a cunhocracia, a parecerística e a avençologia, num espaço de terra queimada e de terra de ninguém, onde não funcionam os fantasmas das sociedades secretas ou das seitas religiosas.


Basta questionar o poder informativo de um qualquer funcionário das finanças que espreita, por dever de ofício, os justificativos e arquiva os registos de certos fluxos de rendimento. Porque essas influências são tão ou mais graves quanto os clandestinos financiamentos partidários ou os bailados das comissões de honra de presidentes da república ou de presidentes de autarquia.


Daí que tudo redunde num ficção filmada sobre as irmãs salgadas ou o benfiquismo/dragonismo de magistrados ou de polícias, todos transformados em capríneos expiatórios destes sepulcros caiados de branco que circulam nas revistas "jet set", ditas cor de rosa. Portanto, nada melhor do que uma enorme gargalhada perante a alternativa regeneradora que foi um dia destes passear-se pelo calçadão da Quarteira, entre o Macário e o Bota.


Para salvarmos o regime, precisávamos que o sistema evitasse o nosso tradicional Robin dos Bosques: a emergência de um Alves dos Reis que, já depois da vigarice, contratou para o respectivo banco das maiores sumidades catedráticas da pátria. Julgo que, para evitarmos esta descida aos infernos, não basta a alternância nem a alternativa, sendo urgente que tentemos aquilo que não faz parte dos manuais ideológicos do pensamento único, escritos por ex-marxistas-leninistas, convertidos ao socialismo dito democrático da esquerda menos, ou à social-democracia da direita também menos.


Para lutarmos contra a injustiça sistémica, cheguemos à conclusão que não vale a pena inventar o que já está inventado, nem descobrir o que já está descoberto. Basta irmos às experiências de outros do nosso tamanho que, perante a mesma globalização e a mesma união europeia, não optaram pelo menos Estado dos colectivistas, mas pelo melhor Estado dos liberais e da racionalidade normativo-axiológica da competência burocrática. Porque é nos Estados mais capitalistas e liberais do mundo que as máquinas fiscais detectam os vigaristas, mobilizam os ricos para o bem comum, têm menos corrupção e fazem com que os pobres, pela concorrência, pela educação, pela avaliação do mérito e pelo direito à felicidade, se libertem da pobreza.