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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

17.8.07

Não é assim que D. Sebastião vai regressar...


Na breve passagem que ontem fiz à Beira-Tejo, nesse rio que passa pela aldeia onde resido, ainda a braços com a lei das rendas emitida pelo governo de Bernardino Machado em 1916, encontrei, por acaso, entre passagens pelas livrarias e a procura de um arroz de peixe na minha tasca, alguns conhecidos e amigos. Um deles, antigo e famoso funcionário do PCP, já depois da revolta do Xico Martins Rodrigues, deu-me factos que reduzem a poeira mitomaníaca certas passagens das memórias de Zita, anunciando-me que depositou o respectivo espólio numa universidade europeia, por desconfiar dos nossos tombos estatais ou fundacionais. Outro, que ainda é militante do PSD, tanto me deu pormenores sobre as mendisadas e as menezadas, como, sobretudo, pelos meandros da luta pelo poder no BCP.


Por tudo isto, preferi passear pela primeira vez no museu Berardo do CCB, para, de noite, assistir, em risada, ao programa da RTP sobre o salgado ex-vice rei das nortadas, enquanto passava os olhos sobre as notícias de um colorido semanário, onde se anunciava que um administrador bancário, ex-governante de Cavaco, queria livrar-se de cilícios da obra, como há meses me tinham confidenciado, enquanto, noutra fonte de informação impressa, se contavam as opções da família Mário Soares, enquanto accionista do principal banco lusitano. Gostei sobretudo da cena filmada em Fátima, onde o antigo aluno dos jesuítas das Caldinhas, levou sua ilegítima a dobrar o joelho a Sua Santidade, cujas benções, afinal, não nos livraram do "fake", onde a ficção continua a confundir-se com as próximas cenas da realidade terrena.


Confesso que enjoei de tudo e que me dava bem mais gozo poder ler as memórias livres dos nossos banqueiros sobre financiamentos partidários e a cunhocracia, nomeadamente pelo emprego que deram a ex-ministros da esquerda e da direita. Porque a iluminação dessas zonas obscuras da nossa sociedade de corte, entre os grandes clubes da futebolítica e o poder bancoburocrático, seria bem mais fecunda para um repúblico do que saber dos pormenores rituais dos grupos místicos, das clandestinidades dos partidos e movimentos políticos, ou dos processos de autogestão de espiões, que marcaram as antigas pides e enredam os recentes serviços secretos.


Com efeito, quando o próprio Mário Crespo conseguiu, em poucos minutos de televisão, revelar a índole quotidiana de um ex-ministro das finanças e ex-governador do Banco de Portugal dos tempos do cavaquistão, seria estimulante podermos navegar na psicologia oculta de outras grandezas e misérias dos protagonistas destas aventuras de serralho, que ensandeceram os últimos tempos da pátria. Sem esses pormenores, não será possível acedermos à íntima biografia colectiva destes restos de Portugal que se vão submetendo para sobreviverem, mas já sem paradigmas mobilizadores que nos levem a querer lutar, para podermos viver com inteligência e com honra.


A recente crise hipotecária norte-americana que, ainda ontem, mostrou como na Bolsa de Lisboa se continua a comer gato por lebre, apenas prenuncia a vestimenta com que se irá ornar a nossa próxima crise política. O próximo sobressalto, que nos poderá fazer despertar deste torpor cortesão, não virá de dentro deste deserto moral, mas será importado à força. Não como o Ultimato, a Grande Depressão ou uma guerra internacional, mas pelo simples levantar de asas de uma qualquer borboleta noutro qualquer exótico deserto, que aqui provocará o "tsunami" de um simples exame de consciência.


A ideia de Portugal, perdida nas brumas da memória, já não tem heróis que façam, da história, a urgente mestra da vida. O Estado-Espectáculo transformou-se numa encenação de frios cadáveres que vão procriando telenovelas de denúncias anónimas à Procuradoria-Geral da República. Não há o calor dos mitos que espontaneamente nos aqueçam pelos lumes da profecia. Nem suficientes sistemas organizacionais que nos ordenem para a complexidade do lume da razão. Os actores visíveis da política, da economia, da moral e da própria religião passaram a sacristães que perderam o sentido dos gestos.


Somos, cada vez mais, um "smog" provocado pela poluição de uma pretensa modernização importada que nos faz crescer em hipermercados e lojas dos trezentos, aumentando o consumo de bugigangas, do recurso ao endividamento bancário e do número de acções de fotocópia em tribunal, mas que não nos fizeram crescer por dentro. Em produtividade, em brio profissional, em moral cívica, em amor patriótico, em autonomia educativa e nessa estrela do norte de qualquer república, a que se deu, desde sempre, o nome de justiça, a verdadeira síntese das virtudes comunitárias.
E nunca é deste simulacro de nevoeiro que regressa o necessário D. Sebastião da regeneração colectiva... Todos teremos um pós-moderno monumento de tijolo e caliça a um anónimo naufrágio que apenas poderá, um dia, ser arrumado nesse arquivo de obras em segunda mão que um futuro berardo meterá no próximo mega-armazém da cultura enlatada. Mais de oito séculos e meio de hiper-identidade produziram este vazio de alma onde os falsos sebastiões científicos vão comendo a sopa e dando pancada nas mãezinhas...