Regressei, ontem, em plenitude, aos trabalhos da minha função. Não piquei o ponto, não entrei nas muitas assoalhadas do meu palácio escolar, não pus fato nem gravata, mas à sombra das árvores do jardim da casa de um colega e amigo, passei horas a discutir cientificamente com um doutorando africano, tendo em vista uma dissertação sobre a necessidade de haver enraizamento cultural dos valores universais da democracia.
Sinto que Angola começa uma nova viagem de costa a contracosta, da guerra para a paz, de um Warfare a um Wellfare, de um Estado de Direito, onde as pessoas deixarão de ser meros súbditos e passarão a reivindicar as novas prioridades da cidadania.Por enquanto, o Estado apenas lhes deu a necessária segurança.
Não tardará que comecem a exigir o bem-estar e a inevitável manifestação da sede de justiça. A paz é uma espécie de planta de estufa que necessita de redobrados cuidados.
Com efeito, os processos políticos de construção do Estado e de construção da nação, implicam um exigente patriotismo científico, onde é fundamental um intenso cuidado quanto à formação e planeamento de elites.
Sempre as memórias de guerra no recanto de todas as conversas. E a ilusão de que a paz já chegou. O lusotropicalismo já não há. A negritude não conseguiu volver-se em angolanidade. Agora exige-se uma espécie de desenvolvimento endógeno,
A comunidade de afectos e de problemas que pode mobilizar angolanos e portugueses não pode continuar a resumir-se ao uso da língua ou à discussão da actividade futebolística. Como dizia Joaquim Barradas de Carvalho, as ideologias passam e as culturas ficam. Os laços afectivos de uma comunidade de amor são o sal que nos vai fazendo convergir. Não em nome de uma abstracta CPLP, mas de um signo bem mais mobilizador, de uma aventura.
As ideologias que nos dividiram já passaram. O comunismo e o anticolonialismo, o capitalismo e o colonialismo já foram chãos que não deram uvas. Porque a guerra trouxe mais guerra. Porque os estados de violência geraram actos de violência.
Luanda continua a ser o nome inteiro de São Paulo de Luanda que o baiano Salvador Correia de Sá recuperou aos holandeses. Não, não fui a Mavinga, onde se desenrolou uma das mais clásicas batalhas da guerra entre as forças militares do MPLA e os grupos enquadrados pelos sul-africanos. Namibe continua a recordar-nos a caminhada dos madeirenses que subiram a serra da Chela e fundaram a cidade de Lubango que teve o nome de Sá da Bandeira, aquele que ousou abolir a escravatura e que em 1836 já queria dar direito de voto a todos os homens da terra nas eleições concelhias. Benguela permanece a cidade das acácias.
Voltei a sentir Luanda, voltei a ser menino, disposto a redescobrir a terra vermelha o negro do olhar. Longe dos dias de revolta e de rotina, vento de mar a mar. O verde calor do poente que nos dá tarde, o ardor das pedras, a dor dos imbondeiros.
Apetece reviver este sonho armilar que nos faz identificar com todos os que procuram o mesmo sonho. Por isso devemos rejeitar os complexos daqueles que muito dogmaticamente e muito inquisitorialmente reclamam para si o monopólio da inteligência, do bem e da universalidade. Afinal são muitas a vias dos que procuram a verdade. Muitos são os caminhos dos que querem seguir a simplicidade dos homens de boa vontade. Todos passam pelo humanismo, pela espiritualidade, por um crescer para cima que também seja um crescer para dentro.
Importa espremer gota a gota o escravo que dentro de nós persiste. O Estado angolano e a nação angolana só podem reencontrar-se se o conceito de libertação nacional se puder conciliar com o sentido universal.
Há a força dominante de um partido-sistema que já foi partido-único e que tende a ser uma espécie de partido revolucionário institucionalizado. Uma vanguarda que tende a transformar-se numa elite bem demarcada, que está acima e por cima e que tem a missão de governar milhões de homens que continuam a sofer da fome, da peste e da guerra.
Angola é, sem dúvida, uma potência regional, um quadrilátero marcado pela força do nacionalismo africano que, felizmente, não tem os dramas do secessionismo e do tribalismo, onde é forte a presença no aparelho de poder, de uma experimentada e competente estrutura militar e de uma burocracia tentacular.
Dizer que tudo é corrupção e tudo simplificar com o nome de cleptocracia e de memória do afro-estalinismo é simples demais. O ambiente internacional que rodeia o espaço geopolítico de Luanda não é favorável. Uma República da África do Sul ainda em turbulência. Dois Congos que ameaçam fragmentar-se. Uma Zâmbia à procura do equilíbrio e um Zimbabwe em tensão. Sobretudo, os muitos apetites que querem lançar-se sobre a riqueza de um território cheio de petróleo e de diamantes.
Luanda já não é nome de guerra, mas o esforço de reconstrução que se planeia e anuncia é, de facto ciclópico. Esperemos que Angola não continua a ser para os angolanos uma oportunidade perdida. Como vencer a desertificação humana do interior, da Lunda às terras do fim do mundo.
Todos os homens de boa vontade tem de ajudar a construir este dar novos mundos ao mundo, onde o apelo à imaginação e à criatividade, pode assumir a dimensão de vivermos de novo um sonho. Sente-se aqui o largo espaço do horizonte e o longo viajar do tempo.
Pressente-se a serenidade. O barco parado na barra do Kwanza, a água castanha, o som dos pássaros na floresta virgem, o primordial de um tempo novo, de um tempo de sempre. Angola pode estar nesta via do regresso ao futuro. Recordo os muitos amigos mortos nas muitas guerras da permanecente guerra, as muitas armas da vingança, os soldadinhos que morreram sem porquê.
Nessa terra os portugueses não apenas os outros que por lá passaram. Porque todos somos herdeiros de uma tradição feita de luzes e de sombras. A sombra da escravatura. As hipocrisias da missionação. Os fingimentos. Sim, fomos esclavagistas, colonialistas, racistas, paternalistas. seguimos o dogma da superioridade civilizacional, o White man’s burden, cristão ou marxista, maçon ou democratíssimo. Ousámos apagar as memórias dos outros, mas conseguimos vencer as circunstâncias.
Mas, na praça da independência, já não está a Maria da Fonte nem o tanque de guerra, mas a rainha Ginga. Não é desaportuguesando-nos que poderemos compreender a angolanidade. Ser angolano e ser português podem ser dois heterónimos da mesma comunidade dos que amam em português.
Não! Já não tenho saudades do império. Apenas tenho memória. Sobretudo dos muitos mortos de uma guerra que não devia ter acontecido, que foi tão bárbara como todas as guerras que são inconscientes pelos seus mortos.
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