Quando uma comunidade se desintegra culturalmente, desenraizando-se do húmus onde se aconchegam e vivificam os respectivos valores e, sobre um vazio de pertenças, apenas actuam os holismos de um Machtstaat - por exemplo, a exigência do imposto -, pode criar-se um aparelho de poder desligado da comunidade, ou um estado de violência susceptível de justificar eventuais actos de violência e, quiçá, a própria legítima defesa daquele individualismo que, perante um vazio de solidariedade, já não é capaz de invocar o aqui d’el rei.
Cem anos depois, as grandezas e as misérias do Portugal Contemporâneo permanecem nos planos da organização política e da mentalidade universitária, com idêntica sociedade relativamente aberta e paralela democracia política, ambas marcadas por uma obsidiante oligarquização e pela consequente corrupção, enquanto no tocante aos subsolos filosóficos permanece o mesmo fundo positivista e o subsequente cepticismo.
Repetindo o que há mais de cem anos escreveu José Frederico Laranjo, também poderemos dizer que os governos da actualidade são […] governos de persuasão, ou governos pelo discurso, conforme a expressão de Guizot, embora com uma liga inevitável de corrupção, de que não são isentos, onde, na ordem internacional, vigora um sistema de sistemas de Estados grandes e pequenos, regidos pelas leis da atracção e do equilíbrio, onde os centros de hegemonia são diversos e onde há uma multidão de nações livres. Porque o tal Estado não passa de uma sociedade mais geral do que as sociedades que o integram, uma sociedade superior, entendida como a nação organizada em Estado ou, à maneira de Bluntschli, como a pessoa da nação politicamente organizada num país determinado.
Tal como há cem anos, a democracia portuguesa volta a enredar-se na secura processualista das chicanas sobre as regras do jogo, predominando a legitimação pelo procedimento sobre as raízes morais e o sentido cívico, ao mesmo tempo que um inevitável regime de porta aberta e de internacionalização, sem as fundações de uma assumida autonomia cultural, propicia formas miméticas de colonização cultural.
Esta continuidade psicológica de um povo e esta permanência dos processos de formação das elites, com as inevitáveis degenerescências classistas dos smart set e jet set, talvez impusesse que os amadores e profissionais da política à portuguesa fossem sujeitos à leitura obrigatória do Portugal Contemporâneo de Joaquim Pedro Oliveira Martins, do Vale de Josafat de Raúl Brandão e dos vários volumes da Conta Corrente de Virgílio Ferreira. Pelo menos, poderia contribuir-se para a não repetição daquelas atitudes que conduzem ao ridículo …
Neste dobrar do milénio, nós, os ocidentais, que fomos capazes de, em nome da ciência, construir uma civilização, até nem podemos ter a pretensão de a ordenar. Num tempo de velocidade, vertigem e impaciência, neste império do vazio e do efémero, continua a faltar-nos uma concepção do mundo e do homem, uma concepção da vida, que entenda o homem e o mundo como um cosmos, dotado de uma ordem que nos faça olhar para cima e para dentro. Continuam a dominar concepções do homem e imaginários típicos do iluminismo e do romantismo, bem como ideologias e ideias-feitas para séculos pretéritos, e não temos a alternativa de uma nova fundamentação para os presentes sinais dos tempos, dado que continuamos a não querer misturar o lume da profecia com a serenidade da razão.
Eis o pano de fundo das angústias do nosso tempo, onde se insere o problema da política e talvez seja melhor reconhecermos aquele homem de sempre que levou Platão, há vinte e cinco séculos, a formular problemas que continuam sem resposta.
Ainda hoje continuamos a procurar a salvação do mundo, para utilizarmos o título de uma tragicomédia de José Régio, de 1954. Ainda hoje, nos dividimos entre o partido democrático, para quem só os princípios da liberdade são a garantia do progresso, o aristocrático, defensor da qualidade dos governantes contra a inconsciência e a mediocridade das maiorias, e o extremista, acreditando em regimes de autoridade baseados as aquisições da Ciência e da Técnica.
E todos apenas vão concordando naquela metodologia que os leva a estar em desacordo, como Lenine a invocar Ford e Taylor, o futurismo fascista a repetir as imprecações do surrealismo anarco-comunista ou Georges Sorel a servir de inspirador para todos os totalitarismos dos anos vinte do século pretérito. Resta-nos a esperança de um rei Pedro da Traslândia que proclame: venho nu, cheio de boa fé e de boa vontade. Perdi toda a ciência que tinha..., que julgava ter, e que nem era ciência nem era sabedoria. Agora não sei quase nada. Vou tentar aprender a cada instante com as realidades interiores e exteriores. Um rei Pedro, aprendendo com aquele Profeta que volta a falar num novo Evangelho sem palavras, ideias e doutrinas: Enchestes os vossos livros de letras; as letras mataram o Espírito! Viveis soterrados em fórmulas.
Ao longo destes anos em que nos temos preocupado quase exclusivamente com a politologia, sempre procurámos aceder a tal província do saber de forma comparativista. Com efeito, seguindo o conselho de Almerindo Lessa, não vale a pena descobrir o que já está descoberto, nem inventar o que já está inventado. Neste sentido, não há que temer ser estrangeirado, desde que sejamos capazes de seguir o conselho de Fernando Pessoa no sentido de nacionalizarmos tendências importadas, até porque não nos parece poder haver pensamento sem pátria, porque só é possível atingir o universal, partindo do local e peregrinando pelo supra-paroquial. Aliás, como proclamava o nosso Miguel Torga, talvez o universal não passe do local sem muros, do aqui e agora das nossas circunstâncias desafiado pelas exigências da cidadania do género humano.
O caso-limite a rejeitar talvez esteja naquela forma do professor português de filosofias estrangeiras que realiza um ensino de tradução e nem sequer cuida de fazer corresponder os conceitos importados às nossas próprias palavras. Insistir nesta via é aceitarmos ser colonizados, mesmo que disfarcemos a cedência com as bonitas palavras do progresso, da modernização ou da europeização.
Da mesma maneira, seria suicida assumirmo-nos como laboratório para experiências sociológico-políticas, visando a confirmação de teorias que outros elaboraram sem nos terem em conta. Se foram tristes algumas cenas do PREC, quando nos tornámos numa espécie de potencial reserva das ideologias e das utopias de certos marginais do Ocidente, continua a ser doloroso prestarmos menagem e citação a alguns politólogos do desenvolvimentismo e da mudança política que nos continuam a comparar a um república de bananas, embora temperada por uns pretensos brandos costumes, onde até poderiam instituir-se estufas de democracia exportável para o Terceiro Mundo ou a Europa do Leste. Soa a ridículo sermos transformados em simples palco para filmes sobre golpes de Estado na América Latina ou para mimetismos sobre o fascismo italiano, nessa permanecente leyenda negra que, à maneira de certas páginas de Byron, nos imagina como um país de bárbaros latinos com dois ou três ministros e um chefe de protocolo, civilizados e polidos.
Mas, se não devemos ser província, isto é, terra vencida por um qualquer centro de saber estranho à nossa índole, seria tolo não acompanharmos o movimento geral das correntes de ideias do nosso tempo, abrindo as janelas de par em par e tirando trancas da porta, mesmo que surjam resfriados ou que fiquemos mais susceptíveis aos assaltos. Infelizmente, a ciência política em Portugal continua a padecer da nossa pequena dimensão universitária, onde, em vez de um harmónico small is beautiful, se acentuam os ancestrais vícios de uma certa guerra civil ideológica típica do Portugal Contemporâneo, do qual ainda não foi possível eliminar algumas heranças inquisitoriais, bem como os subsequentes traumatismos resultantes das rupturas revolucionárias e das ilusões construtivistas, com as suas procuras de um homem novo feitas a golpes de cacete ou de decreto, as inevitáveis doutrinas oficiais e o eventual saneamento dos que não se integram na nova ordem.
Toda essa herança do burguesismo iluminista que supôs poder o homem ser dono e senhor da natureza, dono e senhor da sociedade e dono e senhor da história, essa ilusão de revolução, de homem novo, tão negativa como o seu irmão-inimigo contra-revolucionário, adepto de uma revolução ao contrário ou de um andar para trás reaccionário.
Ora, uma das consequências habituais do estabelecimento de novas intelligentzias oficiais consiste na expulsão dos universitários que não jurem fidelidade ao novo estado de coisas e no estabelecimento, directo ou indirecto de livros únicos, conforme o modelo da reforma pombalina da universidade e dos subsequentes saneamentos de lentes liberais pelos miguelistas ou de lentes miguelistas pelos liberais, num semear de intolerância que continuou por ocasião da instauração da República, da institucionalização do Estado Novo ou do lançamento do processo revolucionário em curso dos anos de 1974-1975.
Todos estes traumatismos provocaram a falta de serena continuidade reflexiva e, consequentemente, a impossibilidade de evolução espontânea, gerando medo onde deveria estar sentido de escola e subserviência onde deveria frutificar a lealdade, ao mesmo tempo que se desenvolvia uma acrítica aceitação de construtivismos que cheirassem a moda ou revelassem sinais de força.
Mesmo na actividade intelectual, dos que formalmente deveriam praticar a necessária liberdade de cátedra, eis que, muitas vezes, surgem recônditos medos ou incompreensíveis cedências à ilusão do mediático.
Muitas vezes, alguns dos mais originais criadores portugueses, acabam por ser esquecidos e silenciados no seu próprio tempo. Já no século XX, um Cabral de Moncada ficou reduzido à torre de marfim do eruditismo universitário, enquanto se sucederam elogios fáceis a glosadores de modas efémeras, sem qualquer espécie de enraizamento na realidade da nossa história. Do mesmo modo, as investidas da imaginação criadora, da filosofia simbólica e das parábolas de um Agostinho da Silva, acabaram por ser reduzidas ao fait-divers de uma qualquer manipulação mediática, como se os apelos que esse mestre foi fazendo pudessem reduzir-se à dimensão de flor na lapela para uso de certos políticos.
Os juristas da Restauração, de Francisco Velasco Gouveia a João Pinto Ribeiro, proibidos pelo pombalismo, foram efectivamente saneados das nossas anteriores culturas políticas, do absolutismo ao demoliberalismo, monárquico e republicano. Muita da filosofia política da escolástica peninsular dos séculos XVI e XVII, nunca mais foi repensada, por não se enquadrar nos moldes laicistas e anticlericalistas, que mobilizou iluministas, positivistas e marxistas. Liberais do centro excêntrico como Silvestre Pinheiro Ferreira ou Luís da Silva Mouzinho de Albuquerque foram vencidos pela história e condenados ao pariato dos mal-amados. Obras contra-revolucionárias, como as de José da Gama e Castro foram objecto de censura explícita ou implícita e por isso nem se reparou que este último autor até foi o tradutor de The Federalist.
Os velhos liberais da era do constitucionalismo monárquico são quase todos banidos pelos posterior republicanismo e quase ninguém reparou que em 1878, um António Cândido editou a primeira grande tese doutoral de ciência política, os Princípios e Questões de Philosofia Política, I - Condições Scientificas do Direito de Suffragio, a que, três anos depois foi acrescentado o II - Lista Multipla e Voto Uninominal.
Os republicanos dissidentes do partido conformado por Afonso Costa e pelo anticlericalismo carbonário deixam de ser citados e a tese de J. E. Campos Lima, de 1914, sobre O Estado e a Evolução do Direito, é saneada por anarco-sindicalismo. Com o salazarismo, novo absolutismo trata de vingar-se de demoliberais da direita e da esquerda e até o próprio pensamento social-cristão quando desalinha do modelo oficioso passa para a marginalidade, pelo que nem registo em bibliotecas públicas ficou da frustrada tese de Domingos Monteiro, Bases da Organização Política dos Regimes Democráticos. I A Organização da Vontade Popular e a Criação da Vontade Legislativa, de 1931.
Muitas vezes, fomos um país que, desprezando a continuidade das instituições históricas e o evolucionismo reformista, foi sendo sucessivamente decepado, tanto das suas raízes como dos posteriores enxertos que voltavam a radicar-se no húmus dos valores permanecentes. A atracção pelo Estado-exíguo tornou-nos numa quase res nullius susceptível de ocupação por uma qualquer minoria militante capaz de controlar a intelligentzia dependente do subsídio estadual, onde os próprios opinion makers se desligaram dos últimos redutos académicos e universitários onde se ousava pensar português.
A inevitável colonização cultural e o consequente niilismo não tardaram a chegar, matando a esperança, a vontade de manutenção de uma autonomia cultural e a necessidade de um sustentado programa de formação de elites políticas, culturais e administrativas. Portugal, depois dos exageros de um pretenso Estado Ético e de uma política de espírito ficava bem mais acanhado na sua dimensão intelectual do que no tocante as respectivas dimensões territoriais, populacionais e económicas. O vazio de política levava às tentativas concretizadas de ocupação dessa espaço por jornalistas e por pequenos lobbies de pequenos patrões, pequenos sindicatos e muitos outros exíguos corporativismos de grupos de amigos e de grupos de interesses.
Ainda hoje podemos dizer, como Álvaro Ribeiro, que quem não escreve em papel pautado por qualquer ortodoxia, quem não está inscrito numa congregação de elogio-mútuo, quem está disposto a lutar contra a sindicalização do trabalho intelectual que ameaça o pensamento livre pela recíproca defesa das mediocridades e pela agressividade da inveja que se manifesta pela humilhação, corre o risco de nem sequer poder comunicar com outros que gostariam de fugir dos pretensos canalizadores da opinião crítica e da opinião pública.
Quando a opinião crítica quase se reduz às páginas culturais das revistas e semanários de fim de semana que vão traduzindo as últimas novidades do vanguardismo e quando a própria universidade se vai eriçando na sua concha sebenteira ou monografista, corremos o risco de mantermos um arquipélago de inúmeras torres de marfim, insusceptíveis de fecundarem a realidade e de influenciarem os movimentos sociais com um pouco de pensamento. Daí continuarmos refugiados no Vale de Lobos da ficção romanesca e no exercício lírico da poesia, da dramaturgia ou do ensaísmo, onde muitos literatos maiores e menores, apesar de tudo, conseguem transmitir uma corrente que se aproxima do sentimento geral da comunidade.
Alguns brilhantes teorizadores portugueses continuam a dividir o mundo segundo as dimensões da direita e da esquerda, mas padecendo daquela visão paroquial e demonizante de certos fantasmas da década de sessenta do século XX, segundo a qual até personalidades que se autoqualificam como da esquerda liberal passam a ser determinados como da direita democrática, para que, a partir de tal posição, não exista mais mundo polido e civilizado, mas tão-só as trevas da reacção.
Continuamos a sofrer os efeitos daquele gnosticismo típico do século XIX que irmanou cientismo, materialismo e positivismo, de tal maneira que qualquer governante dos dias que passam, ou dos imediatamente antecedentes, não deixa de invocar a Luz contra as Trevas, o Progresso contra o Atraso e a Modernização contra o Bloqueio.
Pode ter razão Gabriel Almond quando fala nas chamadas seitas existentes entre os que estudam a política, mas a respectiva qualificação de direita e esquerda, vive no mundo onde a esquerda tem a humildade de conhecer a direita e não reduz a esquerda àquele conjunto dos que nem sequer tratam de ler o que a chamada direita escreve. Assim, refere uma hard right que, no plano metodológico, é essencialmente descritiva, estatística e experimentalista, apontando os exemplos de V. O. Key, James Buchanan, Gordon Tullock e William Riker, contrapondo-a a uma soft right, marcada por uma miscelânea conservadorista que ataca o iluminismo e o cientismo e colocando Leo Strauss como chefe de fila. Na banda da direita, enumera uma hard left, onde destaca a escola dependencista representada pelo ex-Presidente do Brasil, Fernando Henrique Cardoso, e uma soft left, herdeira da Escola Crítica de Frankfurt.
Contudo, se tentássemos utilizar os critérios de Almond, onde a esquerda e a direita tanto se medem pela dimensão ideológica como pela dimensão metodológica, verificaríamos que, em Portugal, não há campo possível para tal análise. Se achamos salutar que a própria dialéctica empobrecedora de um confronto entre a direita e a esquerda seja superado, sempre preferiríamos que o mesmo se mantivesse, porque o que lhe sucedeu, ou foi o domínio de um dos hemisférios, pelos esmagamento do outro, ou, pior ainda, um vazio niilista.
Diremos até que podemos perspectivar a direita e a esquerda em sentido psicológico, como disposições de temperamento. Se há quem considere que a direita prefere a injustiça à desordem, optando pelo primado da moral de responsabilidade, enquanto a esquerda tende a ser marcada pela moral de convicção, acontece que, na prática, os planos podem confundir-se, governos de direita conduzidos por temperamentos de esquerda e revoluções de esquerda feitas por temperamento de direita, para utilizarmos palavras de Jacques Maritain.
Acaba por ser mais importante o modelo dos conformismos estruturais, onde os situacionismos, sejam de esquerda ou de direita, acabam por irmanar-se, enfrentando aqueles que apelam para os valores, sejam de esquerda contra um situacionismo de direita, sejam de direita contra um situacionismo de esquerda.
Acresce que a internacionalização das sociedades civis, das relações intergovernamentais e dos próprios modelos económicos, principalmente os resultantes da unificação europeia, podem levar a que governos de contraditórios sinais ideológicos acabem por confundir-se em idênticas misérias e grandezas, pelo que invocações de tribalismos internos podem assumir a dimensão do paradoxo.
Excertos do texto de "Metodologias da Ciência Política", recentemente saído do prelo, com palavras escritas há mais de dez anos.
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