a Sobre o tempo que passa: Entre Putine e Gomes Freire, com tratantes à mistura

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

25.10.07

Entre Putine e Gomes Freire, com tratantes à mistura


Passados os espumantes vapores da cimeira do Mar da Palha, onde os "tratantes", como lhes chama o meu amigo Augusto Vilela, nos trataram, regressámos a um quotidiano politiqueiro, onde quase todos glosam o chamado saneamento dos barrosistas pelos lopistas, com o PAR a perder o mais gamista dos sociais-democratas, o deputado José Luís Arnaut.


Com efeito, a tal Europa a que chegámos não passa de mera política internacional, onde os diplomatas são mais importantes do que os políticos e onde os tecnoburocratas controlam os próprios diplomatas. Melhor: é política internacional higienicamente afastada dos povos, talvez porque os chefes sabem que os povos já não confiam nos políticos, para que os políticos desesperem dos diplomatas, os quais, por seu lado, se pensam os únicos políticos profissionais, mas para que todos temam o excesso de poder dos funcionários.


Ficam os Gamas, os Arnaut e os Canas, pelo que a Europa deixou de ser um sonho, convertendo-se numa espécie de circuito integrado de alguns tratadores e tratantes, numa espécie de modo de vida neomaquiavélico, entre eurocratas, grupos de pressão e subsidiados, todos esquecidos da política como religião secular. É portanto natural que Putine chegue hoje a Lisboa e venha ao Palácio da Ajuda inaugurar a bela exposição dos czares no nosso Palácio da Ajuda, entre Pedro, o Grande, e Nicolau II, sem que trate de fazer "jogging" com o nosso Zé Sócrates, que bem lhe poderia oferecer um combate de judo em pleno Terreiro do Paço, ou uma colecção de escutas e recortes de jornais sobre as memórias sovietistas da política lusitana, com uma nota pé-de-ouvido sobre os meandros do afastamento da deputada Luísa Mesquita das bancadas de confiança política do PCP, comentadas pelos deputados do PSD Pedro Pinto.


Política internacional é não darmos todos os recortes da recente visita de Jaime Gama a Badajoz, onde deu um curso sobre "Imprensa e Política - De poder a poder" no âmbito do "Ágora - O Debate Peninsular", promovido pelo Gabinete de Iniciativas Transfronteiriças da Junta de Extremadura, mas onde não consta que tenha estado uma só autoridade política espanhola. Política internacional também seria José Sócrates oferecer a Putine uma biografia de Gomes Pereira Freire de Andrade e Castro (1752-1817), com textos de Raul Brandão.
O tal que tendo alcançado licença para servir no exército de Catarina II, em guerra contra a Turquia, partiu para a Rússia. Em São Petersburgo conquistou as maiores simpatias na corte e da própria imperatriz. Na campanha de 1788-1789, comandada pelo príncipe Potemkin, distinguiu-se nas planícies do Danúbio, na Crimeia e sobretudo no cerco de Oczakow, sendo o primeiro a entrar na frente do regimento quando a praça se rendeu em 17 de Outubro de 1788, depois de cerco prolongado. Praticou muitos actos de bravura, sendo aos 26 anos recompensado com o posto de Coronel do exército da imperatriz, que em 1790 lhe foi confirmado no exército português, mesmo ausente.


Política internacional seria Sócrates dizer ao novo czar que o mesmo Gomes Freire, foi um dos principais líderes da célebre "Légion Portugaise" de Napoleão e que esta também esteve na malograda entrada do usurpador na Rússia. E contar-lhe que, em 1816, o mesmo Gomes Freire, a quem chamávamos o general russo, foi eleito Grão-Mestre da Maçonaria portuguesa e tornou-se a «alma» de uma conspiração contra o Marechal Beresford, oficial que administrava Portugal sob mão de ferro e com a ajuda de um primo do grão-mestre, Miguel Pereira Forjaz , como se tratasse uma colónia inglesa, despertando grande descontentamento junto dos oficiais e intelectuais portugueses.


A 25 de Maio de 1817, em estado avançado dos preparativos da insurreição contra Beresford, Gomes Freire foi preso conjuntamente com outros 11 conspiradores, por denúncia de três maçons (três traidores, como na Lenda do 3.º grau...), José Andrade Corvo de Camões, Morais de Sarmento e João de Sequeira Ferreira Soares. Gomes Freire de Andrade foi enforcado por ordem do Marechal Beresford no cadafalso na Torre de S. Julião da Barra e os demais no Campo de Santana, hoje denominado, em sua memória, Campo dos Mártires da Pátria. Segundo narra Borges Grainha, um dia antes da execução um coronel inglês, Robert Haddock, visitou o Grão-Mestre na cadeia e ofereceu-lhe como irmão a oportunidade para a fuga. Gomes Freire recusou a oportunidade!