a Sobre o tempo que passa: Para voltarmos a ser povo, com coluna vertebral!

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

29.10.07

Para voltarmos a ser povo, com coluna vertebral!


Depois de mais um fim de semana de apanha da azeitona, lá para o Vale de Santarém, com memórias de Alexandre Herculano, regresso à pesquisa das novas do dia. Noto que, na Argentina, volta a ser eleito para a presidência um candidato peronista, Cristina Kirchner, assim continuando vivo um "pós-fascismo", tão pouco politicamente correcto quanto a beatificação de 498 mártires espanhóis da guerra civil, tão mártires quanto os milhares e milhares de mártires do outro lado, que uns chamam "rojos" e outros, "republicanos", tal como os vencedores se dizem do "grupo nacional", ou são demonizados simplesmente como "fascistas", como se todos estes nomes correspondessem às coisas nomeadas, especialmente quando continuam as guerras civis frias.


Por cá, reparo que, na sexta-feira, foram reabertas as feridas não saradas da pedofilia que gravita em torno do escândalo da Casa Pia, com intervenções de Pedro Namora nas televisões. Namora é um comunista ortodoxo, tal como Balbino Caldeira é um militante da direita do PSD. Ambos costumam colocar Sócrates e a esquerda do PS como inimigos principais das suas causas globais. Tal como Catalina Pestana, na sequência de José Maria Martins, sofrem de velhos complexos anti-maçónicos, enquanto Felícia Cabrita mantém o estilo de jornalismo MRPP.


Todos denunciam uma conspiração pedófila que se estruturou como rede, embora todos tenham variadas origens e contraditórias concepções do mundo e da vida. Todos invocam uma moralidade, a que qualquer homem de boa vontade adere, seja comunista, direitista, maçon, católico, socialista, social-democrata ou liberal. Quase todos vivem em desencanto, quando reconhecem que os mecanismos policiais e judiciais do Estado a que chegámos não consegue escrever justiça por linhas tortas. Porque nem sequer ainda conseguiu vislumbrar com recortes de eficácia as pontas visíveis do "iceberg" da pedofilia.


Por mim, apenas reparo que seria bem melhor não inventarmos o que já está inventado nem descobrirmos o que já está descoberto. Seria mais prudente passarmos os olhos por processos paralelos, ocorridos no nosso tempo, por outros universos político-culturais um pedacinho mais pluralistas e mais liberais. Por exemplo, a atitude tomada por certos segmentos da Igreja Católica norte-americana, onde a resposta moral da sociedade e o reconhecimento institucional da Igreja foram bem além da resposta judicial, sem contabilizarem tantas manobras dilatórias, habituais nos processualismos, e sem deixarem de enfrentar os casos formalmente prescritos.


Também por lá, os grupos de pressão denunciantes exageraram em teorias da conspiração. Só que, nessas paragens, a sociedade civil não esperou que a culpa morresse solteira. Indignou-se e utilizou a moral social para colmatar as lacunas do juridicismo, do policiesco e do judiciesco, não deixando que tais atentados contra a dignidade concreta das pessoas concretas caíssem neste ambiente de hipocrisia e de "voyeurismo", onde muitos se excitam com os "vícios privados" dos que ostentam "virtudes públicas".


Por outras palavras, temos os polícias e os magistrados que merecemos, tal como temos um governo adequado ao povo que o elegeu. Porque pedimos ao direito que faça moral e aos políticos profissionais que monopolizem a opinião pública. A culpa não morre solteira. O culpado somos nós, o tal povo que não se indigna. Nem sequer exige a alguns políticos, eleitos metapoliticamente, como o Presidente da República, que, federando homens de boa vontade, impulsione a sociedade dos homens livres, para a criação de uma espécie de comissão de honra, verdade e inteligência que exercesse missão idêntica às que, outrora, emitiram relatórios sobre as sevícias, abrangendo todas as instituições afectadas pelas redes pedófilas, laicas ou eclesiásticas, da direita ou da esquerda. Para voltarmos a ser povo, com coluna vertebral.