Hoje estava para escrever sobre mais algumas das desventuras da Bielochina, o tal tempo sem ucronia e o tal lugar sem utopia, onde apenas podem ser cientistas os que são da academia bielochinesa das ciências e onde apenas podem ser de outro carimbo qualquer, os membros da "intelligentsia" que meterem cunha para participação nos estados generalistas do grupelho do sindicato das citações mútuas que os arrebanha, corporativamente, em bate palmas decretino, mesmo que as camionetas de reformados lhes encham as plateias, para imagem num minuto de telejornal. Contudo, depois de consultar a lista das notabilidades que ornam a classe dos inteligentes e homens de letras de tais oficiosidades, cheguei à conclusão que prefiro o clássico conceito epistémico, dos que ascendem ao céu dos princípios pelo esforço individual que fazem na procura da verdade que vislumbram nos reflexos da caverna e que, como tal, são reconhecidos pela silenciosa comunidade dos que pensam de forma racional e justa, independentemente do sectarismo das campanhas eleitorais, do pagamento de favores aos listeiros, do amiguismo, do clientelismo, do nepotismo e dos assassinatos de carácter, formas pelas quais se costuma manifestar a corrupção, ou compra de poder, entre aqueles que deviam seguir os ditames da "docta ignorantia" com os pés na lama do caminho, onde o mesmo caminho se faz caminhando por palavras e obras.
Ainda ontem tentava comunicar aos alunos que tudo começou com um pensamento exageradamente cosmológico, quando se fazia uma distinção absoluta entre o natural e o positivo, onde a natureza era perspectivada como um transcendente, como algo que se contrapunha a uma ordem criada por acção do homem, àquilo que o homem acrescenta à natureza, entendida como uma ordem confeccionada, exógena, artificial, como o puro resultado de uma construção.
Neste sentido, o natural não correspondia ao mero naturalístico, àquela natureza que os sentidos nos dão, configurando-se como uma ideia abstracta, como uma representação da realidade, esse algo de supra-sensível que Jürgen Habermas qualifica como uma suposição ontológica fundamental de um mundo estruturado em si.
Depois, vieram os sofistas, cerca de cinco séculos antes de Cristo, quando se deu uma viragem no sentido antropológico, reagindo-se contra os anteriores excessos metafísicos, mas caindo-se num excesso de sinal contrário, quando se negou a possibilidade do transcendente, muito em especial de uma justiça superior.
Também na Bielochina, há muitos que ensinam os rudimentos da lógica e da retórica, mas aceitando recompensas monetárias para fazerem discursos. Se reagem contra o pensamento cosmológico e fingem que são os representantes do pensamento antropológico, ao considerarem que o homem é a medida de todas as coisas, para utilizarmos palavras de Protágoras, ainda estão no sincretismo genético e acabam carregados de cepticismo. Exagerando na retórica, degeneram pelo abuso da chicana, passando a sustentar qualquer opinião, desde lhes paguem para discursar. Mais do que isso: cultivam a demagogia, sabendo que conquistar a palavra pode ser conquistar o poder.
Por mim, preferia que chegasse a urgente correcção ao cepticismo sofista, formulando-se a dialéctica natureza-positividade, com a distinção entre as leis da cidade e as leis não escritas, as tais que são estabelecidas pelos deuses e que vivem na consciência dos homens, aquelas mesmas leis que Antígona reclamava contra as ordens do tirano, no drama de Sófocles.
Porque o bom cidadão deve respeitar todas as leis escritas da cidade, incluindo as leis más, para que os maus cidadãos não sejam estimulados para o desrespeito das leis boas. Embora seja melhor, pela cidadania, lutarmos por leis menos más, mesmo que se mude de política e de ministro, porque, segundo a história, mantendo-se o sofismo, os sofistas e os sofismos, aquele paradoxo, infelizmente, só pode ser resolvido com o sacrifício do dissidente e do homem revoltado, como devem ser os professores. Os tais que têm que submeter-se às injustas penas de morte que lhes sejam impostas pelos criados dos donos do poder, porque aprenderam a justificar tal atitude com a consideração que mais vale sofrer uma injustiça do que praticar uma injustiça.
Mas seria bem melhor que a "polis" passasse a existir no próprio interior do homem, quando cada um procurasse o sem poder do quase-pária. Porque os da "intelligentsia" situacionista são marcados pelo triunfalismo, enquanto os sem-poder continuam a viver no crepúsculo dos vencidos da vida, entre mochos e corujas. Os tais que não são homens de sucesso, porque sabem que nada sabem e que vencer é ser vencido (Fernando Pessoa). A "polis" e a lei que a comanda têm que interiorizar‑se e que ascender a um valor de vida insuperável. Isto é, o superior deve poder ser determinado a partir do interior de cada um.
Atenienses, agradeço-vos e amo-vos, mas obedecerei antes aos deuses do que a vós. Enquanto possuir um sopro de vida, enquanto for capaz, não conteis que eu deixe de filosofar, de vos exortar e de vos ensinar. A cada um daqueles que eu encontrar direi o que habitualmente digo ‘Como é que tu, excelente homem, que és ateniense e cidadão da maior cidade do mundo e da mais famosa pela sabedoria e poder, como é que não tens vergonha de pôr os teus cuidados em amealhar dinheiro o mais possível e em buscar a fama e as honrarias, ao passo que não tomas qualquer cuidado ou preocupação com o teu pensamento, com a verdade da tua alma?’ (Platão, Apologia de Sócrates). Porque continua a ser necessário, para a felicidade da política, que os filósofos sejam reis e que os reis sejam filósofos (Platão). É por isso que, sendo insindicalizado e insindicalizável, irei à manifestação dos professores, dado que esta não consta que se realize no palco da feira das vaidades.
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