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Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

16.6.08

Gosto desse modo de ser português que nos dá raiva e revolta e que, palavra a palavra, nos pode conduzir para a esperança dos desesperados


Helveticamente derrotados, agora que Scolari nos abandonou por falta de patrocínios, apenas recordo que, de nada, valeu ao povo argentino ter o maradona e o título do mundial. Valia mais ensaiarmos esta amargura, eventualmente passageira, para prepararmos o "day after", o tal que pode agravar a nossa depressão e mostrar, sem disfarce, o fim das ilusões, quando já mais ninguém estiver disposto a passar um cheque em branco aos que nos continuam a cantarolar este permanente inferno de boas intenções.


Porque quando os comentaristas das noites da má língua e do eixo do mal se tornam realistas e a acção dos governantes, presidentes e deputados atinge o nível do anedótico, apenas se confirma que vivemos no país do faz de conta, marcado por uma governança em regime de pilotagem automática, programada para outros modelos e outras circunstâncias, mas onde permanece o beneficiário de sempre, esse conjunto das forças vivas que conseguem controlar os donos do poder, onde não há moralidade nem comem todos.


É por isso, que eu, liberalão e monárquico, gostei da entrevista do Saramago, porque gosto mesmo do Saramago, esse velho senhor que continua acidamente lusitano nas suas mais íntimas fibras identitárias, ao mesmo tempo que se proclama comuna, para manter a coerência. Ele, pelo menos, sabe que, neste situacionismo, um qualquer pode ser decretado "persona non grata" pela presente coligação negativa de cobardes e oportunistas que vai gerindo as cunhas e os encómios aos chefezinhos deste arquipélago de carreiristas dos micro-autoritarismos subestatais. São estas as bolhas donde emerge esse vulcão de impotência que ora tem o nome de Barroso, a nível europeu, ora se chama Cavaco em "lapsus linguae", ora se diz Sócrates, a nível da ficção doméstica da procura de patrocinadores para o murtosa de sempre.


Todos estes representantes da pilotagem automática, que nos está conduzindo ao naufrágio, pensam ter encontros imediatos com a "vox dei" da modernização, mas as pontes que projectam, mesmo que nos iludam com alta velocidade, assentam em pilares de muito tédio, sempre daqui para o nevoeiro da outra banda, enquanto vão mergulhando as cabecinhas nos preconceitos de esquerda e nos fantasmas de direita.


Gosto do Saramago e desse modo de ser português que nos dá raiva e revolta e que, palavra a palavra, nos pode conduzir para a esperança dos desesperados, essa antiga, mas não antiquada, forma de servirmos a comunidade, ou república, através de certa acidez iconoclasta, que é uma das polarizações do nosso modo de ser, mesmo quando se disfarça de maria da fonte ou de anticlericalismo. Apenas não caio na esparrela de procurar uma espécie de D. Sebastião científico, daquela pretensa esquerda que pensa ter ideias só porque soletra uma ideologia de amanhãs que cantam.


Por isso não gosto desse exagero de bom senso que aconselharam à pretensa líder da oposição, a tal que nos quer cavaquistanizar, encarquilhando a pátria em gráficos, curvas e listagens do deve e haver, mui orçamentalistas. Porque não quero que todos, e cada um, se reduzam a meros elementos fungíveis de fluxos e refluxos de adjectivações sem verbos em voz activa e sem substantivos que nos dêem corpo.


Não é assim que nos vemos livres desta mentalidade inquisitorial, dos que, para os respectivos microfones, reclamam o monopólio do caminho e da verdade, fazendo apologética de demonização dos dissidentes e dos meros não louvaminheiros. Basta notarmos esse exagero de comentaristas que agora condenam os irlandeses, só porque estes praticaram a liberdade efectiva dos povos e disseram não aos caminhos gnósticos dos eurocratas, revoltando-se contra as abstracções que nos decretaram como salvíficas.


De nada vale dispersarmo-nos em lamentações, só porque o mais recente D. Sebastião científico de uma falsa Europa sem ideia de Europa se confundiu com os falsos timoneiros que a muitos davam ilusão de sustento e aposentadorias. Deixem os povos livres para a democracia real, que eles, se calhar, estão mesmo fartos daqueles patrões e patroas que estão conduzindo as pátrias e a Europa a becos sem saída. Continuemos a dizer não aos fidalgotes e seus feitores, cujos chicotes apenas estão guardados, mas que continuam a ameaçar os nossos dorsos... A única salvação está em continuarmos com razão e paixão, na procura do eterno, aqui e agora, como transpira da imagem.