a Sobre o tempo que passa: Que Deus possa ser sempre o teu norte, teu lume e teu regaço

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

24.7.08

Que Deus possa ser sempre o teu norte, teu lume e teu regaço


Estou a duas tarefas de poder encerrar o mais triste dos anos lectivos que até hoje vivi como professor universitário, como o tenho sido desde 1976. Hoje, mais uma arguição na minha segunda casa, a Faculdade de Direito de Lisboa, revendo colegas. Amanhã, mais uma prestação de serviços à comunidade. Depois é esperar no cacifo os habituais ditames da burocracia, ou os decretos do senhor ministro, do senhor reitor, do senhor director, quando os pastores do rebanho, sem persuasão nem consentimento do velho QOT, nos querem submeter como funcionário públicos, à espera da aposentação, dispostos a cumprir com zelo as ordens de suas excelências, com toda a disponibilidade do corpo, mas com a alma esvoaçando para a eterna terra dos homens livres, que sempre foi a liberdade académica do humanismo, da ética e da cultura. Espero que tudo não volte a acontecer no segredo das férias do mês de Agosto, com os reformadores sem férias a cumprirem as marotices serôdias dos seus ascendentes, os homens sem sono, em ritmo de RGA arqueológica, com activistas da revolução permanente, ou da revolução ao contrário, que mudaram de cor, mas mantiveram a metodologia vérmica da velha filosofia do pau no lombo dos que não vencem.


Felizmente que, sempre que somos convidados por instituições que ainda se não deceparam da "alma mater" de 1290 (na imagem), podemos respirar liberdade, revivendo uma comunidade de significações partilhadas, onde, pelos valores, podermos compreender os mestres e colegas, bem como sermos por eles compreendidos. Felizmente que ainda podemos receber de alunos, do outro lado do mundo, palavras como simpatia, incentivo, cultura, nobreza, nesse prazeiroso da descoberta. Um deles ainda ontem me dizia: quando me perguntou em dado momento de minha fala, se eu acreditava no ser humano, eu respondi que sim. Acredito, pois existem pessoas ... que contribuem para que o homem possa se enxergar de outra forma e, também, que valorizam não somente um trabalho técnico, mas acima de tudo, o caráter pelo qual ele foi desenvolvido...Que Deus possa ser sempre o teu norte, teu lume e teu regaço. Felizmente que ainda há jovens caloiros lá do Amparo, de Campinas e de São Paulo que, depois de um primeiro ano nesta província dos capitaleiros lusitanos, me confessa: eu pensava ter vindo para a Europa, mas afinal encontrei aqui a mentalidade de uma cidade interior do meu Nordeste...


Quem me dera que os senhores ministros e os senhores reformadores do nosso Estado a que chegámos, os tais que não sabem onde estacionam setenta e tantas mil cartas de condução, tivessem um desses restos de bom senso e de humildade no reconhecimento dos erros das reformas que não houve, mas que apenas destruíram as autonomias antigas desta comunidade, de militares a magistrados, de universidades a igrejas, liquidando instituições que já existiam antes de o Estado ter chegado pelo cacete iluminado do Marquês de Pombal e de seus filhos e bastardos, como Fontes, Afonso Costa, Salazar, Soares e Cavaco. Porque hoje, perante uma crise que nem sequer conseguem identificar, tais instituições poderiam voltar a ser resistência, sobretudo nesta época pós-estadualista, pós-decretina e pós-soberanista, porque elas já eram Europa e república universal antes de Durão Barroso ter ido para Bruxelas, Guterres, para os refugiados e Sampaio, para a tuberculose e a aliança de civilizações, com Cavaco em Belém a ver construir o museu dos coches, mesmo diante da minha varanda da Junqueira, e Soares a entrevistar Chávez para a RTP.


No caso concreto da universidade, os universitários continuam à espera do confronto entre o ministro da reforma que deu à luz um rato que os gatinhos do CRUP já comeram, mas que nos fragmentou a todos em inúmeras guerrazinhas de homenzinhos, visando a conservação do emprego e o facilitismo da carreira, como se os hábitos, as condecorações e as músicas celestiais do sindicato do elogio mútuo pudessem fazer o monge, isto é, o mestre dos claustros da "universitas scientiarum". Mas como ainda ontem confirmei, ouvindo mestres como Castanheira Neves e Gomes Canotilho, ainda há homens livres que semeiam, pelo exemplo, a força da esperança. Segui-los-ei, com a militância do aluno eterno, isto é, daquele que quer continuar a estudar e a aprender, vivendo cada um dos seus dias como se fosse o último.