a Sobre o tempo que passa: agosto 2008

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

21.8.08

Férias são mesmo férias

Férias são mesmo férias, tempo de trabalho sem o controlo da greve de zelo que os burocratas impõem aos funcionários, mesmo que os controladores dos funcionários sejam os chamados gestores, de fora da carreira da função pública, mas que a vão reformando em descaracterização de serviço público. Férias são mesmo tempo de beneditino trabalho de investigação, nesta disciplina a que me sujeitei de algumas horas diárias, pelo que o blogue foi interrompido e, pela via do Hifive, fiquei sujeito a um ataque viral que mandou seis a sete mails para a minha lista de contacto. Apenas alguns jornalistas me foram contactando para o habitual comentarismo. Ontem foi o jornal o Público, sobre o veto presidencial.


Abalo na coabitação, um cisma entre a presidência e o Governo cujo desfecho ninguém consegue antever? "Não é pelo facto de se exercerem os poderes constitucionais que se verificará qualquer inversão estratégica. O que me parece é que o veto reflecte um confronto de concepções do mundo e da vida", afirma Adelino Maltês, assinalando que, pela primeira vez, um Presidente da República "tem um intervencionismo moral". "Infelizmente, é o regresso ao discurso do patriarca", afirma o politólogo, assinalando que enquanto "o agnóstico Mário Soares não defendeu posições laicistas, Cavaco está a ser um Presidente católico".


Como adverte Adelino Maltês, há equilíbrios difíceis de gerir a um ano de todas as eleições: "Se o PS continuar a conciliar, corre o risco de perder para o BE e o PCP, que nas últimas sondagens já somavam 20 por cento das intenções de voto. Se não ceder, também pode ofender o centro, católico". A juntar a isso, deixa uma outra observação, aquilo que designa como "coincidência táctica" entre a posição do Presidente e as declarações de Manuela Ferreira Leite, que manifestou publicamente a sua oposição à nova lei do divórcio. "Há uma ligação com a intervenção presidencial", diz.


No dia 19 Agosto 2008 foi o Discurso directo do Correio da Manhã: “Alberto João Jardim está arrependido”.



Correio da Manhã – Há espaço em Portugal para um partido social federalista como propõe Alberto João Jardim?

Adelino Maltez – Acho que isto traduz um arrependimento do dr. Alberto João Jardim, porque no referendo sobre a criação de regiões no Continente ele foi contra. Agora, arrependeu-se e passou outra vez a ser regionalista para os outros. Até aqui era só regionalista para ele. Quer construir um partido regionalista, federativo, mas os que são regionalistas no Continente não se esquecem disso. É curioso que o dr. João Jardim se diz girondino contra os jacobinos, mas na Revolução Francesa os revolucionários girondinos eram quase todos maçons. Ele quer fazer, portanto, o regresso aos girondinos com a Doutrina Social da Igreja Católica. É interessante esta mistura. O dr. Jardim é um bom político, está bem informado e aproveita esta informação e introduz aqui uma confusão. É tão confuso que tem a dimensão de provocador.



– É uma forma encapotada de recuperar o tempo perdido na corrida à liderança do PSD?



– Para a História, o dr. Alberto João Jardim não vai ficar como apoiante ou adversário da dr.ª Manuela Ferreira Leite. Vai ficar como líder autonomista da Madeira. Neste momento, ele trabalha para a História. Esta hipótese de trabalho, de criação de um movimento, não é pelo Alberto João Jardim que vai lá. Isto é mais um movimento interpartidário do que propriamente um partido. Que existe em todos os partidos.

12.8.08

As dores da Ibéria Oriental (Kartvelos) e o arreganhar da dentuça de uma nova república imperial


As novas falam no conflito quente da nova guerra que deixou de ser fria, lá para as bandas da Geórgia e da Ossétia. Os comentadores de política internacional, especialistas em oleodutos, galpes e venezuelas, vão traduzindo em calão os oficiosos busheiros e europeístas. De pouco lhes interessa que tenha havido um Pharnavaz (302/237 antes de Cristo), o primeiro rei de uma Geórgia, então dita Ibéria caucasiana ou oriental, pelos antigos gregos. Para quê falar num Bagrat III que restaurou a monarquia na mesma Ibéria oriental, ou caucasiana (980-1014)? Que interessa os Ossetas, fugidos das invasões de Alanos e Khazares, colocados sob a tutela dos Tártaros no século XIII, e apenas submetidos á Rússia com Catarina II?


Não sei qual o pretexto das invasões e contra-invasões. Ouvi o João Soares que conhece o terrenos e os meandros políticos das causas e não posso deixar de reparar que nos faz falta uma política europeia para as relações com a Rússia, nesta fase em que Moscovo ensaia o seu regresso ao estatuto de República Imperial, tão república e tão imperial quanto Washington que assim deixa a solidão de única superpotência. As brincadeiras diplomáticas do Kosovo e o desastre da intervenção no Iraque criaram um ambiente propício a estas entradas de leão dos herdeiros do imperial-comunismo de Moscovo, enquanto o outro império, ainda formalmente comunista, nos dá espectáculo de política desportiva.


As nações frustradas, que ficaram séculos sob essa prisão de povos que era a Rússia dos czares e dos estalinistas, precisam de tempo para que possa desabrochar um modelo que não pode seguir retroactivamente as passadas de Jean Bodin e de Tomas Hobbes, refazendo retroactivamente Estados Modernos e Soberanos, de acordo com a velha lei da selva da política internacional, onde os Estados são lobos de outros Estados e não os bons selvagens dos comentários eleitorais da democracia-espectáculo, com que se deliciam os chamados observadores internacionais.


10.8.08

Neste meu refúgio saloio...


Uma semana longe de Lisboa, entre Albarraque e Valbom, nestas férias saloias, de muito trabalho de arrumações de panos, móveis e papelada, quando volto ao meu ofício de marceneiro, herdado de meu avô Zé Horácio, cujas ferramentas ainda uso. Sobretudo, o arrumar de papelada nas velhas arcas de família, enquanto, nos intervalos, lá continuo meu diário trabalho no livro a editar, cuja revisão me levou a refazer os próprios meandros da pesquisa, nas habituais "férias" de muito mais trabalho do que no tempo dos horários. Até de outras universidades me vão contactando, mandando teses e marcando reuniões, tornando impossível a greve de zelo que costuma mobilizar os agentes da burocracia, principalmente os intendentes controleiros dos processos costureiros com que costumam desmobilizar a entrega ao bem comum. Por isso, o acesso ao computador fica quase restrito à consulta do "correio"...

6.8.08

O parlamento é o espelho da nação. Entrevista a Ana Clara




1 — De acordo com o relatório do Tribunal de Contas. as despesas da Assembleia da República atingiram cerca de 94 milhões de euros em 2007. Na opinião de muitos é um abuso de gastos. Considera que os gastos da AR são elevados para a qualidade produzida no Parlamento?

Não me preocupa o montante em causa. A democracia de qualidade tem o preço da qualidade e não se consegue obter numa loja dos trezentos, ou em época de saldos. Até podiam gastar o triplo se isso fosse um real investimento em cidadania, por exemplo se as comissões parlamentares de inquérito não servissem de mera caixa de ressonância das maiorias governamentais. Eu não me importava de ter um parlamento mais caro se ele quebrasse a má tradição de subserviência face aos sucessivos situacionismos, se ele se assumisse como a verdadeira sede de poder e a retirasse dos directórios partidários que fazem do governo uma subsecção e do parlamento uma dependência da liderança do partido dominante. Bem gostaria que os meus impostos servissem para restaurar umas cortes que assumissem a função política de regeneração do regime... E nem sequer me importaria que se reforçassem as áreas de exclusiva competência da Assembleia da República, diminuindo o excesso de poder legislativo do governo, nesse legado do autoritarismo e dos períodos ditatoriais dos governos provisórios. Adoraria que se reforçassem as respectivas funções de supremacia simbólica, limpando alguma ferrugem que vai entupindo as canalizações representativas. Porque se o parlamento se desprestigiar, como mera caixa de aplausos, mesmo que gaste um décimo do que hoje gasta continuará a ser visionado por muitos como um desperdício. Mas se o parlamento servisse para a institucionalização dos conflitos poderia contribuir para a diminuição do indiferentismo e a compressão da cidadania.


2 — Na sua opinião, tendo em conta a contenção de despesas que o Governo invoca no Estado, acha que a Assembleia da República devia também conter os seus gastos?

Se decompusermos os gastos do parlamento, poderemos notar que diminuíram os gastos com deputados, dado que a actual presidência de Gama assumiu um centralismo controleiro, talvez por causa das despesas em matérias como as da presidência da União Europeia, ou nos belos exercícios culturais de música sinfónica e de grandes fadistas nos jardins do Palácio, substituindo o que deveriam ser tarefas do Ministério da Cultura. Até os sinais dos choques tecnológicos em “Powerpoint”, com direito a ar condicionado, lavaram as velhas salas daquilo que outrora foi o “Solar dos Barrigas”. Daí que não comungue em certo miserabilismo que não dá aos deputados o direito aos assessores e consultadorias que têm os directores-gerais e os secretários de Estado. Por exemplo, no anterior 10 de Junho, todos ganharíamos se, para comemorarmos do dia de Portugal, tivéssemos enviado deputados de todos os partidos, que ainda fazem belos discursos, em vez de cinzentos secretários de Estado que espalhámos pelas sete partidas. Eu até gastaria ainda mais dinheiro com a reforma do canal parlamento, retirando-o desse equilibrismo cinzentão, dando, por exemplo, a todos os partidos parlamentares espaços de autonomia em termos de tempo de antena, ou atribuindo a universidades e outros centros de estudo períodos de padagógica divulgação da nossa história do presente, para que a verdadeira política tivesse uma divulgação equivalente à propaganda das religiões nos canais públicos.

3 — Considera que a redução do número de deputados em Portugal seria benéfica?

Sempre defendi, publicamente, e até em intervenções numa comissão parlamentar, como convidado, uma redução drástica para cinquenta parlamentares, cada qual com um gabinete equivalente ao de um ministro. Mas, desde que se gastasse mais, com a criação de parlamentos regionais, para eliminarmos tantas segundas e terceiras filas em São Bento. Por outras palavras, prefiro investir em deputados de qualidade do que em assessores governamentais e da burocracia hierarquicamente dependente da administração verticalizada. Não alinho na tradicional denúncia dos tradicionais adversários da democracia que, desleixadamente, são antiparlamentaristas. Com isto, não abdico de criticar politicamente este estilo assumido por muitos parlamentares que se renderam à partidocracia e se desleixaram no recrutamento dos melhores. Mas não deixo de observar alguns bons sinais dados pelo esforço reformista de António José Seguro cujos frutos não se fizeram ainda sentir porque o vinho velho do mais do mesmo não deixa de ser azedo só porque pusemos umas aduelas recauchutadas nas velhas pipas.

4 — Em que medida?

Julgo que seria bem melhor repararmos nalgumas compressões da autonomia dos deputados, em nome de alguns normas de gestão dos falsos especialistas em reformas administrativas que já há muito deveriam estar reformados. Eu prefiro recordar que a casa de São Bento tem o dever de assumir a tradição semeada nas Cortes de Leiria de 1254 e na rebeldia criadora das Cortes de Coimbra de 1385, devendo honrar o princípio sagrado do consensualismo, segundo o qual cabe ao parlamento cumprir o sagrado do velho princípio segundo o qual “o que a todos diz respeito, por todos deve ser decidido”. Daí que não deva o parlamento ser um sítio daquela “vontade de todos” de Rousseau, quando todos decidem pensando nos próprios interesses parcelares, mas antes o sítio da “vontade geral”, quando todos decidem, renunciando aos próprios interesses, e assumindo o todo, o imperativo categórico do bem comum, através daquela instituição de conflitos de uma democracia real, onde os adversários dialogam porque têm “lugares comuns” como os do patriotismo, numa comunidade que tem de ser comunidades das coisas que se amam.

5 — São muitos os que consideram que a imagem da AR espelha a imagem do País. Também nos gastos, na Assembleia o despesismo é visível?

O parlamento é o espelho da nação e a crise que o afecta é uma crise de povo que se manifesta pelas classes políticas que se resignam a este situacionismo do mais do mesmo, com o acréscimo dos privilégios para os favoritos de certa sociedade de corte e para as castas que continuam a pensar que o poder é uma coisa. Uma coisa que se conquista, nomeadamente um aparelho de Estado feito presúria que se distribui pelos vencedores, para que os vencidos esperem pela alternância para se vingarem e fazerem nova pilhagem, a que Rodrigo da Fonseca chamava “comer à mesa do orçamento”. E o pior é darmos nome de democracia a certos sucedâneos de nobreza e de clero, sempre que os partidos se degradam e passam a ser federações de investimentos individuais na militância política interesseira, aquela que espera um retorno pelo curto-circuito da cunha e das restantes medidas de efeito equivalente à falta de imparcialidade na administração da coisa pública. Se continuarmos a ser massa informe que não se mobiliza para o bem comum, através do pluralismo e da autonomia da sociedade civil, continuaremos a ser pasto de entregas alienadas ao chicote e à cenoura de um aparelho de Estado, absolutista, autoritário ou sectário, o tal que transforma a democracia no desespero do partido-sistema, mesmo que se disfarce no bipartidarismo rotativo. E o parlamento deveria ser resistência contra esta mentalidade de partido único e das sucessivas usurpações das personalizações do poder.

5.8.08

Aquela verdade que está acima do povo, acima da pátria e acima da ideologia


Morreu ontem um dos mais marcantes mestres de quem sou: Alexandre Soljenitsine. Não apenas pela lição de antitotalitarismo consequente que a todos nos deu, mas pela procura da conciliação de tradição e libertação. Partindo de um humanismo existencialista, marcado pela memória do sofrimento das vítimas do totalitarismo soviético, trata de retomar certas pistas do romantismo messiânico e das utopias conservadoras, proclamando uma espécie de teologia laica de libertação.


Com efeito, através de uma paradoxal prosa, a obra de Soljenitsine é uma espécie de curso de lógica perante uma sociedade alógica, até porque, como dizia Hegel, a prosa é uma realidade ordenada. Com Soljenitsine vai assim reintroduzir-se na história cultural russa, o conceito de povo e o de consciência popular, à maneira da Escola Histórica Alemã, bem como o radical humanismo que o leva à consideração daquela verdade que está cima do povo, acima da pátria e acima da ideologia, como dizia Dostoievski.


Nele, a fidelidade, ao programa dos dissidentes: um idealismo religioso absoluto, ou seja, com uma orientação predominantemente cristã e uma aliança espiritual permanente com aqueles que professam outras religiões; um antitotalitarismo absoluto, ou seja a luta contra todos os tipos de totalitarismo: marxista, nacionalista ou religioso; um democratismo absoluto, ou seja, o apoio consequente a todas as instituições e tendências democráticas da sociedade contemporânea; uma ausência absoluta de partidarismo, considerando: nós somos o Leste e o Ocidente da Europa, as duas metades de um mesmo continente e devemos ouvir-nos e entender-nos antes que seja tarde (in revista Kontinent).


Em 1967 proclamava: se um dia conquistarmos a liberdade, devê-la-emos exclusivamente a nós mesmos. Se o século XX vier a comportar alguma lição para a humanidade, nós tê-la-emos dado ao Ocidente, e não o Ocidente a nós: o excesso de um bem-estar perfeito atrofiou nele a vontade e a razão. Isso não implica a desculpabilização dos russos e, com eles, de todos os homens.


Mas também reconhece: faltou-nos o suficiente amor à liberdade, e, antes de mais, a plena consciência da verdadeira situação. Gastámo-nos numa incontível explosão no ano de 1917 e, depois, apressámo-nos a submetermo-nos... merecemos simplesmente tudo quanto sobreveio depois.


Porque os povos precisam de derrotas como certas pessoas precisam de sofrimentos e de desgraças: elas obrigam a aprofundar a vida interior e a elevar-se espiritualmente.



Também ele viviu num país que se assemelhava a um meio espesso e viscoso: é incrivelmente difícil efectuar aqui o menor movimento, pois este, em compensação, arrasta imediatamente todo o meio ambiente.


Porque toda a época estalinista é apenas a continuação directa do leninismo, mas com mais maturidade nos resultados e um desenvolvimento mais vasto e mais igual. O estalinismo nunca existiu, nem na teoria nem na prática... estes conceitos foram inventados pela ideologia ocidental de esquerda, após 1956, apenas para defender os ideais comunistas.


Porque estes os três quartos de século de pós-estalinismo deixaram-nos tão imersos na miséria, tão esgotados, tão apáticos e desesperados, que muitos de nós sentem os braços cair e parece que só uma intervenção do Céu nos poderá salvar.
Espero que alguns descendentes do Marquês de Pombal, de Fontes Pereira de Melo, de Afonso Costa e Salazar compreendam porque Soljenitsine foi um dia homenagear a resistência da Vendeia contra os jacobinos de esquerda e de direita. Eu, adepto da aliança dos girondinos e dos tradicionalistas, quero continuar a casar a honra com a inteligência...