1 — De acordo com o relatório do Tribunal de Contas. as despesas da Assembleia da República atingiram cerca de 94 milhões de euros em 2007. Na opinião de muitos é um abuso de gastos. Considera que os gastos da AR são elevados para a qualidade produzida no Parlamento?
Não me preocupa o montante em causa. A democracia de qualidade tem o preço da qualidade e não se consegue obter numa loja dos trezentos, ou em época de saldos. Até podiam gastar o triplo se isso fosse um real investimento em cidadania, por exemplo se as comissões parlamentares de inquérito não servissem de mera caixa de ressonância das maiorias governamentais. Eu não me importava de ter um parlamento mais caro se ele quebrasse a má tradição de subserviência face aos sucessivos situacionismos, se ele se assumisse como a verdadeira sede de poder e a retirasse dos directórios partidários que fazem do governo uma subsecção e do parlamento uma dependência da liderança do partido dominante. Bem gostaria que os meus impostos servissem para restaurar umas cortes que assumissem a função política de regeneração do regime... E nem sequer me importaria que se reforçassem as áreas de exclusiva competência da Assembleia da República, diminuindo o excesso de poder legislativo do governo, nesse legado do autoritarismo e dos períodos ditatoriais dos governos provisórios. Adoraria que se reforçassem as respectivas funções de supremacia simbólica, limpando alguma ferrugem que vai entupindo as canalizações representativas. Porque se o parlamento se desprestigiar, como mera caixa de aplausos, mesmo que gaste um décimo do que hoje gasta continuará a ser visionado por muitos como um desperdício. Mas se o parlamento servisse para a institucionalização dos conflitos poderia contribuir para a diminuição do indiferentismo e a compressão da cidadania.
2 — Na sua opinião, tendo em conta a contenção de despesas que o Governo invoca no Estado, acha que a Assembleia da República devia também conter os seus gastos?
Se decompusermos os gastos do parlamento, poderemos notar que diminuíram os gastos com deputados, dado que a actual presidência de Gama assumiu um centralismo controleiro, talvez por causa das despesas em matérias como as da presidência da União Europeia, ou nos belos exercícios culturais de música sinfónica e de grandes fadistas nos jardins do Palácio, substituindo o que deveriam ser tarefas do Ministério da Cultura. Até os sinais dos choques tecnológicos em “Powerpoint”, com direito a ar condicionado, lavaram as velhas salas daquilo que outrora foi o “Solar dos Barrigas”. Daí que não comungue em certo miserabilismo que não dá aos deputados o direito aos assessores e consultadorias que têm os directores-gerais e os secretários de Estado. Por exemplo, no anterior 10 de Junho, todos ganharíamos se, para comemorarmos do dia de Portugal, tivéssemos enviado deputados de todos os partidos, que ainda fazem belos discursos, em vez de cinzentos secretários de Estado que espalhámos pelas sete partidas. Eu até gastaria ainda mais dinheiro com a reforma do canal parlamento, retirando-o desse equilibrismo cinzentão, dando, por exemplo, a todos os partidos parlamentares espaços de autonomia em termos de tempo de antena, ou atribuindo a universidades e outros centros de estudo períodos de padagógica divulgação da nossa história do presente, para que a verdadeira política tivesse uma divulgação equivalente à propaganda das religiões nos canais públicos.
3 — Considera que a redução do número de deputados em Portugal seria benéfica?
Sempre defendi, publicamente, e até em intervenções numa comissão parlamentar, como convidado, uma redução drástica para cinquenta parlamentares, cada qual com um gabinete equivalente ao de um ministro. Mas, desde que se gastasse mais, com a criação de parlamentos regionais, para eliminarmos tantas segundas e terceiras filas em São Bento. Por outras palavras, prefiro investir em deputados de qualidade do que em assessores governamentais e da burocracia hierarquicamente dependente da administração verticalizada. Não alinho na tradicional denúncia dos tradicionais adversários da democracia que, desleixadamente, são antiparlamentaristas. Com isto, não abdico de criticar politicamente este estilo assumido por muitos parlamentares que se renderam à partidocracia e se desleixaram no recrutamento dos melhores. Mas não deixo de observar alguns bons sinais dados pelo esforço reformista de António José Seguro cujos frutos não se fizeram ainda sentir porque o vinho velho do mais do mesmo não deixa de ser azedo só porque pusemos umas aduelas recauchutadas nas velhas pipas.
4 — Em que medida?
Julgo que seria bem melhor repararmos nalgumas compressões da autonomia dos deputados, em nome de alguns normas de gestão dos falsos especialistas em reformas administrativas que já há muito deveriam estar reformados. Eu prefiro recordar que a casa de São Bento tem o dever de assumir a tradição semeada nas Cortes de Leiria de 1254 e na rebeldia criadora das Cortes de Coimbra de 1385, devendo honrar o princípio sagrado do consensualismo, segundo o qual cabe ao parlamento cumprir o sagrado do velho princípio segundo o qual “o que a todos diz respeito, por todos deve ser decidido”. Daí que não deva o parlamento ser um sítio daquela “vontade de todos” de Rousseau, quando todos decidem pensando nos próprios interesses parcelares, mas antes o sítio da “vontade geral”, quando todos decidem, renunciando aos próprios interesses, e assumindo o todo, o imperativo categórico do bem comum, através daquela instituição de conflitos de uma democracia real, onde os adversários dialogam porque têm “lugares comuns” como os do patriotismo, numa comunidade que tem de ser comunidades das coisas que se amam.
5 — São muitos os que consideram que a imagem da AR espelha a imagem do País. Também nos gastos, na Assembleia o despesismo é visível?
O parlamento é o espelho da nação e a crise que o afecta é uma crise de povo que se manifesta pelas classes políticas que se resignam a este situacionismo do mais do mesmo, com o acréscimo dos privilégios para os favoritos de certa sociedade de corte e para as castas que continuam a pensar que o poder é uma coisa. Uma coisa que se conquista, nomeadamente um aparelho de Estado feito presúria que se distribui pelos vencedores, para que os vencidos esperem pela alternância para se vingarem e fazerem nova pilhagem, a que Rodrigo da Fonseca chamava “comer à mesa do orçamento”. E o pior é darmos nome de democracia a certos sucedâneos de nobreza e de clero, sempre que os partidos se degradam e passam a ser federações de investimentos individuais na militância política interesseira, aquela que espera um retorno pelo curto-circuito da cunha e das restantes medidas de efeito equivalente à falta de imparcialidade na administração da coisa pública. Se continuarmos a ser massa informe que não se mobiliza para o bem comum, através do pluralismo e da autonomia da sociedade civil, continuaremos a ser pasto de entregas alienadas ao chicote e à cenoura de um aparelho de Estado, absolutista, autoritário ou sectário, o tal que transforma a democracia no desespero do partido-sistema, mesmo que se disfarce no bipartidarismo rotativo. E o parlamento deveria ser resistência contra esta mentalidade de partido único e das sucessivas usurpações das personalizações do poder.