a Sobre o tempo que passa: Aristóteles em timorense, contado aos povos sujeitos a governos de espertos

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

28.10.08

Aristóteles em timorense, contado aos povos sujeitos a governos de espertos



O hoje, de aqui e agora, já depois de tomada a bica, ainda é o ontem de Lisboa, e lá me vou disciplinando neste beneditino exercício de preparação das aulas, depois de ontem termos introduzido o tópico das relações do direito e da força. Porque se Hobbes, com o seu Leviathan, parece sedutor, para quem anseia pelo monopólio da violência legítima, também Kant, com um Estado de Direito universal, a proteger os mais pequenos, evitando que os peixes grandes os devorem, tem aqui um cunho eminentemente realista e libertador. 

E lá vou lendo Aristóteles em timorense, tal como poderia ler o mesmo em Confúcio. Porque, aqui, no princípio, edificou-se uma casa, donde saiu uma geração cada vez mais numerosa, Uma-Fukun, o mesmo que nó ou origem, tal como Santo Isidoro dizia de natio, que também vem de nascendo. Aqui, foi ao filho primogénito dessa casa que se atribuiu o título de Liurai, isto é, de o mais do que a terra, também dito Na'ai em Mamba, tal como o Deus único dos missionários cristão se passou a chamar Na'ai Maromak.

Também como em Aristóteles, as várias aldeias se federaram e, acima delas, surgiu uma acrópole, com um Uma-Fakun a superiorizar-se aos vários chefes de aldeia, os Datos. Só que, havendo um governo por conselho, também se institucionalizou o Nahe Biti Boot, com o Liurai com os seus Datos, chamados Liana'in, os mais velhos, detentores da palavra...

E a história continua, em timorense, como em grego, como em latim, como em português arcaico, do tempo das aldeias comunitárias, as efectivas raízes do próprio Estado, entendido, como um concelho em ponto grande, conforme ensinava o nosso Infante D. Pedro no Livro da Virtuosa Benfeitoria, o primeiro tratado político pensado e escrito em português. Por outras palavras, o que vos conto, resulta do que tenho aprendido de alguns trabalhos dos meus alunos Liana'in, os tais que bem poderiam ter sido ouvidos para a institucionalização constitucional da democracia dos timorenses, onde uma segunda câmara bem era necessária, porque ela já existe realmente, quase de forma clandestina, porque nenhuma decisão política fundamental é aqui tomada sem prévia audição dos senadores.

Porque se o costume não é fonte de direito novo, continua a ser o principal fornecedor do direito eficaz e válido, mesmo quando não está formalmente vigente. Sobretudo, nos espaços praeter legem e como critério de juridicidade na aplicação do direito. Porque só com o costume se pode evitar a pior das heranças da colonização e da ocupação militar, aquilo que Hannah Arendt qualificou como o governo dos espertos. Isto é, a aplicação arbitrária da elefantíase legislativa do direito formalmente posto na cidade. Onde há sempre alguns que são mais iguais do que outros e uma lei para os amigos e outra para os inimigos e dissidentes.

O exagero legiferante, sobretudo o das traduções em calão, sempre levou a que houvesse uma enorme distância entre o direito formal e a vida, porque os administradores podem seleccionar arbitrariamente, como o velho déspota, as leis e regulamentos convenientes. E o pior é quando o mesmo administrador se assume como o príncipe absolutista e determina que não está sujeito à lei que aplica aos súbditos, colonizados ou ocupados (princeps a legibus solutus). Ou então, quando considera lei tudo o que ele diz (quod princeps dixit legis habet vigorem), mandando, passando a capataz de um poder sem controlo. Bom dia, Lisboa. Também por aí, na ex-capital do império, há muitos destes inimigos do Estado de Direito, muitas almas de capataz, muitos candidatos a feitores dos donos do poder que não são legítimos. Chegou a hora de expulsarmos os vendilhões do templo do povo.

Imagem picada aqui.