a Sobre o tempo que passa: Só por dentro das coisas é que as coisas realmente são

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

22.10.08

Só por dentro das coisas é que as coisas realmente são



O mais habitual nestas paragens, onde o normal é haver anormais, prende-se com as repentinas e frequentes quebras de fornecimento de energia eléctrica, não tanto pela ausência de ar condicionado, dado que a sombra ou a brisa a compensam, quanto, sobretudo, pela impossibilidade de funcionamento dos computadores, no acesso ao resto do mundo, com a inevitável "jet-rooter". E não há pilhas de "backup" que aguentem esta sucessão de imprevisibilidades, a que só a sonhada barragem de Laga pode pôr cobro. No entanto, é comovente notarmos como, nos próprios bairros degradados, que estão bem próximos do circuito da barra que vai do City ao BNU, há inúmeros cafés e lojas com acesso à net, onde jovens passam horas e horas.


Infelizmente, também aqui aterram algumas aves de arribação com ar de intelectuais desempregados pela demografia das nossas veiga-simónicas reformas de ensino, das tais que não estudaram previsões demográficas e que para o exótico, do pretenso veni, vidi, vinci, pensam poder vender o peixe estragado de respectivas retóricas, gramáticas e didácticas, que julgam ser "artes liberales". Mas acontece que, por cá, são mais precisas "artes bona" dos latinos, as tais que são passíveis de conciliação com uma adequada "ratio studiorum". Também, infelizmente, de vez em quando, lá temos que aturar alguns subprodutos das entidades herdeiras das faculdades de teologia, transformados em profissionais da intriga, dado que pensam poder interferir nas teias da partidarite dos mauberes, como se eles fossem parvos e não soubessem distinguir o trigo do joio. Não faltam sequer candidatos a espiões desempregados, formados em "copy and paste" de pós-colonialismo e artigos de divulgação das "Twin Towers", que nem sequer respeitam democracias como esta, feitas de milhares de mortos, em nome da honra e da pátria. Entre muitos exemplares de agrobetos e de revolucionários frustrados, encontro, felizmente, uma maioria de amantes deste lugar, portugueses à solta e homens de boa vontade, convertidos à alma destas paragens, com destaque para os militares da GNR e da PSP.




Há, sobretudo, uma enevoada metafísica nestes orientais trópicos, há pedaços de espírito que vão dando contornos às coisas, neste saudosismo dos antípodas, onde Pascoaes pode ser Pessanha e Pessoa volver-se em Wenceslau, para não falarmos em engenheiros agrónomos surrealistas que passam a Cinatti. E todos os dias, há um dia novo, uma noite de sonhos sem pesadelos, há palmares e mangueiras bordejando casas que são casas, nesta cidade de muitos fios ostensivos, motoretas sempre em bulício e essências que podem realizar-se pela existência, a dos homens concretos de carne, sangue e sonhos. Porque as essências apenas se objectivizam espiritualmente, quando as subjectividades pegam na alma e a deixam penetrar nos corpos, compreendendo. Porque só há almas quando elas se religam a um corpo, porque todos os transcendentes só o são quando situados pelos exercícios espirituais. Porque há um idealismo materialista, ou um materialismo idealista, aquele que diz, da natureza das coisas, que só por dentro das coisas é que as coisas realmente são. Continuo estoicamente panteísta.




Aqui me esqueço desse estado a que chegámos, com o Mário Lino e o Teixeira dos Santos a fazerem o trabalho sujo do insulto à líder da oposição, dessse estado a que chegámos que pensa que se escreve razão por entre tantas linhas tortas de razão de Estado, perdido que está pelos meandros do poder pelo poder. Por mim, confesso que, aqui e agora, estou cada vez mais do outro lado, que é, desses lados, não querer ter lado nenhum. Que é estar farto desses trejeitos dos que torcem e torcem, vergando, porque apenas têm medinho do quebrar, preferindo o jogo carreirístico dos que pensam que assim vergando não perdem o investimento que estão a fazer pelas vidinhas, saltando pocinhas e evitando as pingas de chuva, julgando que, dessa forma, não vão molhar-se e alcançar o sonhado lugar ao sol. Prefiro saudar o missionário franciscano aqui da ilha, vindo da Beira profunda, que vai de motoreta de aldeia em aldeia, escrevendo divino por tantos caminhos tortos e lodosos da terra dos homens. Por isso vou continuar a tentar escrever, ao sabor da pena, o que me vem à mente, mesmo que seja a quente, para os detectores de ferro frio nos inventariem no regaço das respectivas regulamentarices...