a Sobre o tempo que passa: Longe dos trabalhos de casa para a reeleição, do respeitinho ao chefe, do leitão à Bairrada e do camarão de Espinho

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

21.10.08

Longe dos trabalhos de casa para a reeleição, do respeitinho ao chefe, do leitão à Bairrada e do camarão de Espinho


Acordo cedinho, pelo nascer do sol, percorro as ruas fervilhantes do nascer do dia, não leio jornais de Lisboa, estou farto da literatura de justificação dos ausentes-presentes, a que os que restam chamam memórias, a fim de promoverem um revisionismo da história, como se eles pudessem fazer interpretação autêntica dos factos em que foram actores, na maior parte dos casos, secundários, onde apenas soletraram guiões que outros produziram. Não comento as opiniões de Marcello Caetano sobre Freitas, Adriano e Kaúlza, nem as respostas que alguns deles vão dando contra Marcello e uns contra os outros. Portugal devia abrir as janelas e as portas, limpar o caruncho e o bolor e voltar ao navegar é preciso, mesmo para aqueles que têm de se submeter para sobreviverem, porque sempre devem lutar para que possam continuar a viver. Prefiro as ruas de Dili pela manhã e recordar o que ontem transmitia sobre a política, esse agregado humano superior à casa, onde o chefe político não é o chefe da casa, onde inventámos o Estado para deixarmos de ter um dono, um "dominus", um "patrão", um "oikos despote". Prefiro recordar a velha história da doença da democracia, quando, desesperados, regressamos ao neofeudalismo de muitos donos, de muitos patrões, de muitos déspotas, de muitos protectores, de muitas compras do poder, de muitas cunhas, de muitos padrinhos e de intricáveis redes de micro-autoritarismos e sociedadezinhas de corte. Prefiro esquecer o quintalinho da Europa, de mão estendida à espera das migalhas da subsidiocracia e da mesa do orçamento. Prefiro um café pela manhã diante da ilha do Ataúro, prefiro passear ruas que ainda têm nomes como Jacinto Cândido, padrões com frases de Camões e edifícios com as cinco quinas. Prefiro não reparar nos recados que Jaime Gama deu há bocado aos senhores deputados do PS, porque, para serem reeleitos, devem fazer trabalho de casa, com leitão à Bairrada e camarão de Espinho. É bem mais interessante repararmos que para chegarmos à política, temos que sair do espaço doméstico da economia e entrarmos na praça pública pelo discurso, que em grego se dizia "logos", isto é, razão, agregando-nos em tornos dos símbolos maiores que nos dão pátria, desde um Estado representativo, onde o chefe não é patrão, a uma religião secular que promova a comunidade entre as coisas que se amam, onde o primeiro pode ter poder, desde que assente na autoridade da segunda, porque autoridade é coisa que vem de autor, de fundador, da raiz donde brotamos e crescemos, a caminho das saudades de futuro.