a Sobre o tempo que passa: Entre a fome das assoalhadas e a manutenção da canalhocracia

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

1.10.08

Entre a fome das assoalhadas e a manutenção da canalhocracia


A grande crise aí está, ainda de contornos indefinidos, porque pode rebentar em qualquer dos cantinhos desta rede de participações invisíveis e já é não passível de detecção pelas habituais teorias da conspiração. Nem sequer pode ser contida pela exportação de magallanes para a Venezuela, embora acabe por ser ofuscada por esta discussão sobre o sexo dos anjos quanto à lista de famosos que está entre as 3 200 casas para pobrezinhos que os grandes autarcas lisbonenses ofereceram a companheiros de partido, à direita, ao centro e à esquerda. Julgo que não vale a pena fazermos comentários, dado que os muitíssimos portugueses que são servos da gleba hipotecária, só porque gastam mais de um terço do respectivo vencimento no tal empréstimo que fizeram para a compra da casita, viram assim, bem reforçado, o seu nível de confiança nos políticos, nos autarcas e nos partidos que serviram de intermediários para tal moralidade do sapateiro de Braga. Porque só comeram alguns e perdemos todos. Aliás, só ao ler o JN de hoje é que percebi certos apoios a certas movimentações políticas de falecidos políticos quanto a certos congressos partidários bem anteriores à queda do muro de Berlim, quando já se compravam opositores, com aquilo que os comprados qualificam como a minha rica casinha.

A falta de autenticidade do poder, isto é, a distância que vai entre aquilo que se proclama e aquilo que se pratica, atingiu assim o nível da tragicomédia, confirmando a hipocrisia de um sistema pantanoso que ocupou o regime democrático. A nenhuma vergonha poderia continuar a desfilar face a manifestos casos de persiganga que, por enquanto, sou obrigado a ocultar, onde tão culpados são os protagonistas da vindicta, detentores do poder, como os acompanhantes da procissão que os não denunciam, para poderem obter um qualquer naco que escorra da mesma mesa do orçamento.

Ao menos, na Primeira República, tudo se fazia em evidente legalidade, dado que a lista dos beneficiários, ditos revolucionários, era publicada no "Diário do Governo", saindo a última já depois do 28 de Maio de 1926, quando era chefe de governo Mendes Cabeçadas. Também a monarquia liberal, na fase de presúria, em pleno devorismo, utilizava a técnica denunciada por Garrett sobre o "foge, cão, que te fazem barão... mas para onde, se me fazem visconde?". Mas, logo em Setembro de 1836, com Passos Manuel, Sá da Bandeira e Vieira de Castro, a moralidade fez um golpe de Estado sem efusão de sangue, para poder cumprir-se a Regeneração. E quando a pouca vergonha se instalou com o cabralismo, até se recorreu à guerra civil, à maria da fonte, à patuleia e à carbonária. Nem sequer faltou um rei, como D. Pedro V, que demitiu o governo que ele qualificou da "canalhocracia".

O mesmo atavismo canalhocrático permanece. Chamou-se adesivismo depois do 5 de Outubro. Chamou-se viracasaquismo depois do 28 de Maio. É isto depois do 25 de Abril. E só algumas décadas depois é que os contornos do devorismo começam a ser revelados, assim se confirmando como grande parte dos actuais problemas políticos tem a ver com a fome das assoalhadas. Outros contornos poderão ser revelados dentro de alguns meses, quando a base de dados das vindictas atingir a mesa dos jornalistas de investigação. Porque há histórias de grande recorte humanístico que poderão enlamear pretensas figuras morais da pátria que, apesar de parecerem gigantes, têm pés de barro feitos por gaioleiros, viúvas e campos de futebol, com trocas e baldrocas de vereadores, silêncios e legalíssimas decisões, onde se poderão compreender súbitas viragens da esquerda para a direita, e da direita para a esquerda, confirmadas pela secção de rendimentos vindas do público e confirmadas pelos registos do IRS.

Aliás, julgo que uma das medidas da chamada "glasnot" poderia passar pela afixação das declarações de IRS emitidas pelos serviços públicos nos mesmos serviços públicos onde certas personalidades são dirigentes. Para que eles não fiquem apenas sob vigilância do chefe de repartição e das bocas que o mesmo emite no bar. Outra forma seria copiarmos as grandes campanhas eleitorais norte-americanas com a edição "on line" dos donativos. O nosso atavismo devorista e canalhocrático, que caiu nas teias da fome de assoalhadas e nas manobras dos gaioleiros e dos patos bravos, bem precisava de uma Revolução de Setembro para a remoção do devorismo, a fim de evitarmos a eventual Patuleia. Resta saber se quando o partido regenerador colaborar no processo, pela criação, tal como em 1848, da própria carbonária, ainda haverá pedaços do corpo da pátria para salvar. Porque a democracia pode cair teias da canalhocracia, do devorismo, do adesivismo, do viracaquismo e o consequente latrocínio pode transformá-la numa bandocracia.

PS: Ainda ontem, num júri da Universidade de Coimbra, um desses grandes catedráticos que ainda é um paradigma de catedrático, invocava o tempo perdido das escolas como detentoras de uma certa moral. É evidente que logo confirmou que falava no pretérito. Quando ainda havia catedráticos como ele, que, pelo exemplo, emitiam máximas universais e quando havia colegas irmanados no mesmo imperativo categórico e quando havia escolas que tinham ideias de obra, regras de processo consensualizadas e manifestações de comunhão entre os seus membros, conforme a definição de instituição consagrada por Maurice Hauriou. Sorri por dentro, sem testemunhar os serôdios mecanismos de destruição das ideias de obra, da comunhão pelas coisas que se amam e pelas regras do mínimo jurídico, as que põem a justiça acima do direito, o direito acima da lei, a lei acima do regulamento e o regulamento acima do despacho. Mesmo depois de morto, quero que digam, de mim, que vivi como pensei.