Continuo preparando a mochila de peregrino, esquecendo as desventuras que a condicionaram e mergulhando nos pormenores de fichas e números que me marcam como cidadão e funcionário público. Ainda assim, aceitei repto do Rádio Clube Português, para comentar os números da militância partidária em Portugal, repetindo a minha perspectiva desta partidocracia, instituída, de cima para baixo, a partir dos lugares do governo provisório e do Conselho de Estado de 1974. Apenas confirmo que somos o sistema partidário mais rígido da Europa Ocidental, com um partido-sistema, rotativo, onde entram o PS e o PSD, os quais reforçaram o seu predomínio com a integração europeia, dado que as duas faces do Bloco Central também se assumem como secções domésticas das duas principais multinacionais partidárias da Europa.
Ambos são partidos catch all, assumindo com eficácia a respectiva feição de federações de grupos de interesses e de grupos de pressão, com a consequente função de grandes angariadores de cunhas e colocações preferenciais na mesa do orçamento, ao mesmo tempo que se modernizaram pelas técnicas da grande engenharia subsidiocrática, naquela plataforma de um centrão que consegue misturar a esquerda moderna com o negocismo da direita dos interesses. O PSD é maioritário, confirmando-se que federa cerca de metade dos filiados nacionais em partidos e assumindo-se, cada vez mais, como um arquipélago feito de muitas militâncias localizadas, onde são mais dinâmicos os influentes locais e regionais, a que, normalmente, damos o nome castelhano de caciques, pelo que aparece, em muitos casos, um PSD especializado, do partido da Madeira, ao partido de Gaia, agora que os de Gondomar e Oeiras estão em hibernação.
Já o PS é menos um partido de militantes, como no tempo de Soares, com as suas peixeiras e pescadores da Nazaré ou de Buarcos. Adquiriu a dinâmica guterrista dos estados gerais, revista pelas novas fronteiras de Sócrates, onde surgem cerimónias de recrutamento de independentes e métodos de reciclagem de ex-comunistas e radicais de esquerda que costumam entrar no PS pela via governamental. Quanto ao PCP, herdeiro da tradição de ordem religioso-militar, como o definia Agostinho da Silva, tem uma dimensão metapartidária, com os seus mártires, a sua cultura e até a sua moral, bem como o pragmatismo das correias de transmisão, dos sindicais aos verdes.
A única novidade que alterou a herança do governo provisório tem a ver com a integração no sistema da esquerda revolucionária, crítica do defunto sovietismo, a que se dá o nome de Bloco de Esquerda, agora reconhecido até pelo PCP, para uma eventual futura aliança. Finalmente, o CDS, tão catch all quanto o PS e o PSD, apenas diverge pela fraca dimensão eleitoral, mas não pela natureza. Daí que se assuma como charneira e muleta, desde os governos de Freitas com Soares, de Freitas com Sá Carneiro e de Portas com Barroso e com Santana. Aliás, Freitas sem CDS foi ministro de Sócrates e Portas pode ser futuro coligado do próximo PS, ou do próximo PSD. Isto é, pode ter futuro.
Por outras palavras, estes partidos de Estado, privatizados pelo financiamento partidário, são o espelho do Estado a que chegámos. Precisavam de um valentíssima e reverendíssima reforma, para não se confundir a partidocracia com a democracia. Só que, desconfio que eles se queiram auto-reformar. Durante alguns meses, vou, felizmente, vê-los de bem longe...
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