a Sobre o tempo que passa: .como esta pátria de fazedores de coisas pequeninas adquiriu o hábito de não enaltecer com a devida honra e vénia um Ser pensante de luz não submetida

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

8.12.08

.como esta pátria de fazedores de coisas pequeninas adquiriu o hábito de não enaltecer com a devida honra e vénia um Ser pensante de luz não submetida


Desde anteontem que, por aqui, a ligação Internet desapareceu e, por isso, tive que a pedir emprestada a outras entidades, transportando o meu portátil para sítios que têm reparadores de "wireless" em dias de feriado. Curiosamente, tudo aconteceu pouco depois de sentir, também aqui, em Dili, em dia de anteontem, ao cair da tarde, sessenta segundos de um forte seis, vírgula dois, aqui no centro do Anel de Fogo, num desses sismos que, durando mais outro minuto, nos obrigaria a sair de casa e a subir às montanhas, pelo risco de tsunami. Valeu-nos que todos os vizinhos, dados a estes mistérios de relação com o cosmos, vieram todos para a rua bater com tachos e panelas. Explicaram-me que os tremores de terra acontecem porque os deuses que nos sustentam o planeta ficaram subitamente distraídos e têm de ser acordados, para continuarem a cumprir sua missão. Tudo bem! Acordaram mesmo e não houve réplicas.

Ontem foi um pouco mais grave, com a diluviana chuva que inundou a cidade, até porque estava fora de casa e tive de regressar sem ser de jipe, passando quilómetros e quilómetros de cidade como se fosse um submarino, com toda a gente nas ruas, tomando banho nas praias do Farol ou lançando-se ao chão em plena rua. Depois de uma arriscada travessia, lá voltámos ao bairro, onde os canteiros tinha sido submersos com um bom meio metro de água, transformando a nossa casa em pequena ilha. Só por estas bandas é que os elementos são como sempre foram, a terra em fogo com os seus deuses, o céu em água por onde navegamos, o mar inteiro, a terra úbere e o início da criação, assim todos misturados dentro de nós.

Depois da tempestade, veio a bonança, em dia de comemoração do aniversário da rainha de Portugal, em cujos pés repousa o sinal do quinto império do mundo. Lá vou abrindo os jornais de Lisboa, aqui pela Internet e confirmo a morte de mais um mestre: António Alçada Baptista.  Guardarei palavras para depois. Por enquanto, apenas aqui deixo o testemunho que, sobre ele, me deixou, em 26 de Setembro de 2005, a Teresa: 

António Alçada Baptista. Um testemunho de M. Teresa Bracinha Vieira

(26 de Setembro de 2005)




A arbitrariedade, a tortura, o desrespeito pelas liberdades e direitos dos cidadãos, não são, afinal privilégios de uma qualquer polícia política. Não querida Teresa, só sentirás a verdadeira violência, aquela para a qual não há recurso nem agravo que liberte uma réstia de esperança, se acaso um amigo te abandonar e tu nele tiveres acreditado, ou, se acaso o teu companheiro te conseguir demonstrar o quanto relativo é o amor que por ti sente. Daqui a uns anos falaremos destes assuntos, disse-me o António Alçada Baptista há muitos anos atrás.

Ontem, faltavam-nos as palavras para falarmos da Casa de Sintra e da Casa de STª Catarina. A emoção dos trilhos suculentos torna-nos, às vezes, muito frágeis, face à capacidade de resistirmos ao tempo e dentro dele os sentires que se nos emaranham na alma, mas lúcidos, sim, lúcidos sempre.
Também o António quando me via mais calada, dizia-me:
- Estás a ver como tenho razão? Nos lançamentos dos teus livros nunca me esqueço de repetir: é a tal coisa, a mão direita da Teresa sabe mais do que ela. E digo e agora acrescento que umas vezes é a morte que nos leva antes de a gente falar, outras, é a morte que os leva sem nos terem ouvido. No livro “Um olhar à Nossa Volta”, digo isto a propósito do Manuel Vinhas. Já te tenho falado dele, lembras-te?



Sim, claro que me lembro. Julgo que nunca pequei por desatenção nos nossos imensos e repousantes e irrequietos diálogos. Digo mais, digo que, às vezes, tratava-se de auferir algo de momentos de puro ócio em que o espírito flúi sem regra ou sem eira nem beira, ao menos na possível aparência.

De novo, ontem, rimo-nos a propósito de um dia em que nos lembrámos de andar a dizer a uns companheiros de mesa de restaurante, o quanto ambos delirávamos não ter que fazer nada, no sentido de dar tempo à preguiça de ocupar o seu espaço e que depois e afinal a gente cansava-se imenso a convencer os outros disto.



Uma tarde, na outra banda, à beira-tejo e, enquanto imaginávamos qual seria o poema que o nosso querido Pedro Tamen iria ler no lançamento de um outro livro meu e deliciando-nos, antecipando o verdadeiro esplendor que o Pedro sempre coloca na declamação, dizia que, nessa tarde, passámos revista a tudo o que, analisando a vida, chamaríamos de pequena-história-grande-mestra. De repente, o António virou-se para mim e disse: isto de estar a ficar velho tem os seus quês e estou-me a lembrar de uma e antes que mudemos de assunto, digo-te que recordo um cartoon no qual estava escrito:
- Tu a étè staliniste en 1950!
- C’ est pás moi qui me suis trompé, c’est l’époque!



Também líamos muitas vezes em voz alta textos soltos de livros retirados sem escolha da estante e parávamos logo que uma palavra nos entusiasmasse e dela fazíamos a dissertação da tarde. Aliás, foi assim que comentámos os célebres “contra os canhões marchar, marchar”, que tanta polémica deu num dez de Junho recente quando o António deitou voz a propósito. Nesse dez de Junho à noite o António disse-me pelo telefone:
- Tanta contestação para quê? Até parece que só nós é que somos inteligentes.
E riu-se de jeito franco e solto, como só ele o sabe fazer quando comenta as estadas no Brasil na casa de Jorge Amado.

Ontem, o António Alçada pediu-me que abrisse, ao calhar, uma página do meu último livro e lhe lesse umas palavras. Assim fiz e li:
- Sim, eu tenho um cavalo negro e um cão que eu amo. Ambos parecem-se com anjos despenteados, não sei porquê, mesmo aos Domingos passeiam-se comigo assim. Julgo que foi a partir do dia em que num profundo soluço não aceitei ser socorrida.
E o António com a imensa ternura de sempre, mas quase a ralhar-me, disse-me:
- Por exclusão de qualquer outro dia, vemo-nos amanhã. Caminho para os 79 anos. Temos muito que falar.

Todas estas palavras ao longo deste texto se explicam tão só por uma razão: não encontro outras que ilustrem o agradecimento de alma que pretendia saber expressar ao António Alçada Baptista, pelo tempo que me dispensou e pelo tempo que me dá, pela superação de si que sempre me transmitiu, pela Amizade constante de lua cheia.

Assim eu pudesse moldar uma montanha verde no interior dos meus olhos e deles salpicasse um magma que me permitisse uma dedicatória de G. DUHAMEL, inteiramente a Alçada Baptista « Avalia a tua riqueza pelo valor do que dás», e permite-me que te diga, António:
- Assim saibas o quanto te devo.

É que eu sei, como muitas pessoas saberão, que sempre o seu coração falou e falará mais forte que o seu interesse. E também sei como esta pátria de fazedores de coisas pequeninas adquiriu o hábito de não enaltecer com a devida honra e vénia um Ser pensante de luz não submetida.
Assim chegassem estas palavras até lá onde…

M. Teresa Bracinha Vieira

PS: Desculpa, António, mas lembrando a inspiração que deste aos militantes da Capela do Rato, estando em Timor, não poderia deixar-te sem uma fotografia de uma menina dessa altura que, anos depois, já nos seus quarenta e cinco anos e depois de grave intervenção cirúrgica, foi para as ruas de Lisboa a favor desta pátria do sol nascente e contra a limpeza étnica. Usava tranças no tempo da Moraes....