a Sobre o tempo que passa: Xutos e pontapés contra o senhor engenheiro, ou as ilusões do protesto

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

16.4.09

Xutos e pontapés contra o senhor engenheiro, ou as ilusões do protesto


Ontem, quando chegámos a ver em campo uma equipa portuguesa com dois portugueses, contra uma equipa inglesa também com dois portugueses, ficámos todos a entender o que é o neomercantilismo dos actuais entrepostos, a que damos o nome de equipas de futebol. Desta maneira, nem reparámos que o presidente Cavaco, rodeado pelos emplastros do costume, lá fez um comentário sobre o relatório da Primavera do Banco de Portugal, reconhecendo o óbvio, com cirúrgicas palavras à Professor La Palisse. Vale-nos que o tema do dia tem mais a ver com a canção de protesto com Xutos e Pontapés contra o Senhor Engenheiro. Um pouco à imagem e semelhança da que Abrunhosa lançou contra Cavaco. E que a imediata nostalgia revolucionária dos cinquentões logo ligou à chamada geração Zip Zip e aos movimentos de protesto antifascista à Lopes Graça.

Prefiro comparar a canção aos bonecos do Contra-Informação. É mais uma válvula de escape pela qual se exprime a revolta pessoal e social contra o situcaionismo, do que uma peça de um processo subversivo visando derrubar a ordem vigente. E nem sequer tem imediatas possibilidades de mobilização partidária. Logo, se eu fosse ao Sócrates, em vez de me irritar com a coisa, fazia como o Salazar, que ficava deliciado com as anedotas que contavam sobre ele. E se até fosse mais maquiavélico, procedia como os militares da mais recente ditadura brasileira, que impulsionavam os modelos culturais de protesto, para eles ficassem a badalar pela utopia, para não os deixarem invadir o campo do sistema político, assim reduzindo os estragos. Hoje, os chamados aparelhos ideológicos já não são o Zeca Afonso e o Adriano Correia de Oliveira, mas o Goucha e a Fátima Lopes. E José Sócrates é mais fino do que alguns pensam. Quando fez o lançamento do "Menino de Ouro" não usou a balada, mas técnica magistral de António Ferro.

Basta recordar que não foi por estupidez que Marcello Caetano e Ramiro Valadão deixaram crescer o Zip Zip, baseados que estavam nas técnicas de controlo social recebidas do modelo de Estado de Segurança Nacional, montado por Golbery do Couto e Silva em Brasília. Pensavam que com esta forma controlada de saída do vapor, não sairia a tampa da panela de pressão, coisa que conseguiram enquanto durou a percepção de um tempo de vacas gordas. Só que o choque petrolífero e as consequentes vacas magras fizeram com que o monstrengo do estadão de outrora caísse, não pelos pés de barro, mas pelas baionetas que o sustentavam. Por outras palavras,  as canções de protesto serviram, sobretudo, no "day after", como elemnto fundamental do discurso de justificação do poder, não tardando a perderem-se no exagero situacionista, desde o "força, força, companheiro Vasco" à própria passagem dos principais baladeiros para o golpismo frustrado do 25 de Novembro, onde Jaime Neves e Eanes, com o apoio de Vasco Lourenço e Melo Antunes, acabaram por derrubar um movimento que tinha como símbolo o principal e mais consequente dos baladeiros, Zeca Afonso.

Por outras palavras, tudo depende das vacas magras que ontem foram mais uma vez anunciadas pelo relatório do Banco de Portugal. Infelizmente, as cigarras dominantes continuam a cançoneta do regresso ao 11 de Março do estadão nacionalizador, nessa nostalgia revolucionária que se começa a confundir com as saudades do mercantilismo pombalista, só porque alguns banqueiros repetiram o modelo de Alves dos Reis e caíram nas malhas da mesma administração da justiça que se enreda nas volutas dilatórias que nos fazem ter saudades do Juiz da Beira de Gil Vicente.

Voltando à dita música de intervenção e às canções de protesto, importa assinalar todos os sistemas políticos são das tais panelas de pressão onde, de vez em quando, pode saltar a tampa. Nas ditaduras podem gerar revoluções onde as canções, tanto as de protesto, como a "Grândola, Vila Morena", como as do português suave, como o "E depois do adeus", podem ser senhas para um golpe de Estado. Em democracia, há outros golpes de Estado, mas sem efusão de sangue, as das mudanças eleitorais...

Os situacionismos não se reduzem apenas aos aparelhos clássicos do estadão, dado que precisam de aparelhos culturais e ideológicos. E os aparelhos de repressão, para aliviarem a pressão, podem deixar aos protestantes os aparelhos culturais, desde que ele fiquem pela utopia e não entrem na repressão. Resta saber se, aqui e agora, os aparelhos culturais vivem num situacionismo de protesto ou ao ritmo de certo pimba. E se algumas pretensas canções de protesto não querem ascender à categoria de hinos situacionistas, com leves operações de revisionismo, onde, em vez de bretões, se utilize o politicamente correcto dos canhões. 

Estamos num tempo, onde a própria figura de um Che Guevara passou a ser mediaticamente vendida pelas multinacionais de Hollywood e onde, entre nós, os protestantes baladeiros passaram para os programas escolares oficiais e já são nome de rua, caindo nas teias do sacristão que perdeu o sentido dos gestos. Até porque, algumas vezes, os pretextos para o protesto não passam de golpes de "marketing". Não estranharia que, nas próximas campanhas eleitorais, os mais situacionistas dos partidos recrutassem os próprios cançoneteiros que contra eles protestaram. Não me refiro aos Xutos, evidentemente, que não precisam destes golpes publicitários, mas aos fabricantes do "agenda setting" que continuam a ler os velhos manuais dos três "efes" napolitanos, onde antes do "pão", vinham as "festas". E não foi por acaso que traduzimos em calão a coisa e lhe chamámos "fátima, futebol e fado"...