a Sobre o tempo que passa: Algumas cenas do presente salazarismo dito democrático, em ritmo de pá que já não é porreiro

Sobre o tempo que passa

Espremer, gota a gota, o escravo que mantemos escondido dentro de nós. Porque nós inventámos o Estado de Direito, para deixarmos de ter um dono, como dizia Plínio. Basta que não tenhamos medo, conforme o projecto de Étienne la Boétie: "n'ayez pas peur". Na "servitude volontaire" o grande ou pequeno tirano apenas têm o poder que se lhes dá...

14.5.09

Algumas cenas do presente salazarismo dito democrático, em ritmo de pá que já não é porreiro


O estilo dos debates quinzenais no parlamento, nesse pugilato verbalístico de um divino Sócrates contra tudo quanto é diabo oposicionista, onde o clímax foi o regresso do "pá", mas pouco "porreiro", depois das rasteiras de Rangel, pouco iluminou os atalhos sombrios que nos conduziram à presente encruzilhada, onde, apesar de todos saberem escrever as frases que hão-de salvar Portugal, nenhum conseguirá salvar mesmo Portugal, dado que voltámos à rotina de uma decadência e da falta de autenticidade. Aliás, os irmãos-inimigos da social-democracia e do socialismo democrático, onde escasseiam os nobres fundadores do regime e abundam os fidalgotes que delapidam a herança, gostam de mascarar-se da rábula do senhor contente e do senhor feliz, adorando que se discuta o regresso do Bloco Central. Acresce que também Portas (Paulo), tal como o PCP e o Bloco de Esquerda são unânimes interesseiros quanto a esse "agenda setting", o tal que dá ilusões ao comentarismo político quanto à salvação do sistema por estes actores da presente partidocracia. Contudo, quem põe o regime acima destes bonzos, endireitas e canhotos e equaciona como altamente provável a impossibilidade do PS atingir a fasquia da maioria absoluta, começa a espreitar cenários que se aproximam do actual estado de coisas na República Checa.

Qualquer observador minimamente atento da nossa história partidária é capaz de compreender que o Partido Socialista não vai acabar se o Licenciado em Engenharia José Sócrates for forçado a pedir a demissão da liderança, se assim o povo o ordenar. Não porque ele corra o risco de ser substituído por Manuel Alegre ou por António José Seguro, mas antes por uma conjugação de esforços que livrem o partido de tipos como Carlos Candal, José Lelo, Augusto Santos Silva e outra tralha socrática, mas sem a habitual síntese cangalheira, como a que poderia receber o nome de Jaime Gama. O PS tem suficiente energia para escolher uma personalidade pouco ávida da personalização do poder e capaz de gerar confiança representativa tanto da respectiva ala esquerda, como da maioria de militantes pouco dados ao negocismo. Basta que esse servidor da ideia de obra consiga poder ser primeiro-ministro num governo de acordo interpartidário com o PSD e o PCP, dado que Portas deve ser condenado a escolher o caminho marginal do Bloco de Esquerda, por serem quiméricos os resultados eleitorais mínimos que lhe permitiriam negociar um acordo de maioria com José Sócrates.

Por outras palavras, a partir de Outubro, a democracia portuguesa vai ter resultados eleitorais que a forçarão à procura de uma regeneração que nos livre da demagogia eleitoralista de leis feitas à pressa, onde tanto se procura a criminalização do enriquecimento ilícito, como, no dia seguinte, se permite a imagem do deboche no financiamento partidário. Assim, quando alguns dos nossos companheiros de blogosfera, coerentes no seu anti-socratismo primário, logo se volvem em seguidistas dos bons sinais de mudança vindos do PSD, cá por mim continuo a não estar disposto a passar um cheque em branco a quem ainda não pediu perdão ao povo por ter sido causas dos mesmos vícios que agora cantarola contra o PS. Basta assistir a uma charla de Ângelo Correia, a um discurso de Alberto João ou a um choradinho de Manuel Dias Loureiro, para concluir que algumas andorinhas como Rangel ou certos discursos de Manuela Ferreira Leite ainda não são suficientes para medalhar com confiança um partido que continua a proibir a expressão da vontade popular, nomeadamente num referendo sobre as determinações que a multinacional do PPE impõe à autodeterminação portuguesa.

Do PP (Partido Portas), não vale a pena falar: basta a comparação com a energia do PCP e do Bloco de Esquerda. Os porteiros nem sequer conseguiram a autenticidade dos discursos de alguns bispos sobre a crise social e a crise da globalização, perdidos em causas como o securitário e o chauvinismo doces, de que os primos do Bloco Central logo se proveitarão quando acharem conveniente. Até nem conseguiram fazer uma justa defesa da ética do capitalismo democrático, porque cederam ao oportunismo do liberalismo a retalho, subscrevendo a cobardia daquela economia mística e salazarenta que gosta de privatizar os lucros e de socializar os prejuízos. Paulo Portas, o tradutor para português de Novak, esqueceu-se das fichas que então o doutrinavam, quando as associações católicas de empresários tentavam traduzir em vaticanês a ética protestante do capitalismo.

Aliás, ainda ontem ouvia o Professor Fernando Rosas, mantendo a sua coerência de marxiano, sublinhar que a esquerda autêntica era o último reduto dessa abstracção chamada Estado, contra os malefícios do mercado, emitindo um discurso que, sem ser de esquerda ou de direita, seria o mais próximo daquele que um Salazar renascido emitiria e até ultrapassaria, denunciando "a fina flor da plutocracia". Julgo que quase todos os situacionistas de esquerda e de direita não reparam que o Estado a que chegámos já não é apenas o Estado da República dos Portugueses, porque, aqui e agora, a maior parte dos factores de poder já não são nacionais, havendo uma pluralidade de estadualismos, grande parte deles incaptável pelo dever-ser dos constitucionalistas. E não é a regulação estadualista dos portugueses que consegue colmatar a lacuna do vazio de Europa e da falta de uma urgente república universal capaz de controlar a geofinança e a geo-economia.

Por mim, que sou liberal e, como tal, defensor de um público e de um político mais eficazes, não situo essa necessidade de distribuição da justiça apenas no fantasma do Marquês de Pombal, de Fontes Pereira de Melo, de Afonso Costa e de Salazar. A regulação que nos falta não cabe no parlamento português, no governo português ou no presidente português. Precisa deles, mas situa-se na supra-estadualidade que só culturas políticas pluralistas, poliárquicas e fedralistas conseguem captar. Tentar matar elefantes com fisgas é gastar energias desnecessariamente. O Estado português é pequeno demais para os desafios da presente crise e utilizá-lo como grande demais para que se esmague a autonomia da sociedade civil é remar contra o tempo e liquidar a hipótese de uma pilotagem do futuro.